Foto: Disney/Pixar/Divulgação
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Para que serve o tédio? Ele deve servir para alguma coisa, já que é uma sensação tão comum ao ser humano e que já vem até mesmo programada em nossos circuitos cerebrais. O tédio é daquelas coisas difíceis de definir. Apesar disso, percebemos imediatamente a sua presença e o desconforto que ela nos causa. Sentimos como que um cansaço indefinido ou um certo aborrecimento e logo tratamos de arrumar qualquer coisa para fazer, na esperança de nos livrarmos dele. O que nos custa perceber é que o tédio seja uma experiência humana absolutamente normal e até mesmo desejável para uma vida plena.
O velho Saramago gostava de lembrar que “as crianças também crescem à sombra”. Com isso ele queria dizer que elas também precisam aborrecer-se de vez em quando para alcançarem um desenvolvimento psíquico mais completo e saudável. O sábio escritor português reconhecia que todos nós, em qualquer idade, precisamos ter nossos momentos de tédio para refletirmos sobre nossa condição de seres humanos, ajustar o rumo de nossas vidas e evoluirmos como pessoas.
A vida moderna conspira para que tenhamos cada vez menos tolerância ao tédio. Como se não bastasse o culto da produtividade que nos impele a uma atividade constante, nossas tecnologias modernas – smartphones, TVs, computadores – estão sempre ligadas e, aparentemente, parecem nos proteger contra o tédio.
Assim, passamos várias horas do dia deslizando o dedo em telas de smartphones ou zapeando o controle da TV na esperança de que alguma novidade evite a experiência do tédio. Mas essa talvez seja uma vã ilusão, pois o tédio seguirá presente ainda que a gente deixe de o perceber. O que a superficialidade da experiência de vida moderna faz é nos impedir de encontrar um significado profundo em nossas vidas, e isso pode ser exatamente a causa de nosso tédio.
Para um estudioso do tédio moderno, o filósofo norueguês Lars Svendsen, essa falta de significado nas coisas que fazemos no dia a dia estaria por trás do tédio atual. Mais do que isso: para ele o simples fato de desperdiçarmos várias horas do dia fazendo coisas existencialmente insignificantes, como assistir a programas estúpidos na TV ou acompanhar postagens idiotas em redes sociais, já seria um indício claro de que nossas vidas são altamente entediantes.
Assim, a busca de significado ou de um propósito para o que fazemos seria um antídoto muito mais eficiente contra a experiência do tédio que a hiperatividade frenética que caracteriza nossas vidas atuais.
Perceber o tédio pode ser desconfortante, mas é exatamente essa sensação de desconforto que pode ser usada como um tipo de mola propulsora que nos impulsione na direção desejada para o crescimento pessoal e nos possibilite fazer algo significativo durante nossa curta existência. Se o tédio é como uma poeira fininha que se vai depositando aos poucos sobre nós, precisamos percebê-lo para, então, sacudir essa poeira e procurar algo mais significativo para fazer.
De modo alternativo, podemos simplesmente conviver de maneira pacífica com o tédio, aceitá-lo e até mesmo usá-lo como algo positivo, por meio de sua ressignificação. Há alguns séculos, Pascal dizia que grande parte dos problemas da humanidade advinham do fato de que os homens não conseguiam ficar quietos em seus aposentos sem fazer nada, o que os levava a cometer as maiores atrocidades vistas através da história.
Ficar em paz consigo mesmo pode parecer pouca coisa, mas é o que nos possibilita desenvolver a arte de uma vida contemplativa. Tal arte consistiria em conseguir habitar o momento presente sem a pressa de fazer uma coisa qualquer.
Também significa lançar ao mundo um olhar reflexivo que nos ajude a entendê-lo melhor, pois é somente ao compreender o mundo que podemos entender o lugar que nele ocupamos e o que podemos fazer para torná-lo mais aprazível – ou pelo menos ainda habitável – para as novas gerações.
É preciso mudar nossa relação com o tédio e aceitar a sua presença em vez de escondê-lo sob camadas espessas de uma hiperatividade frenética e existencialmente insignificante. Está claro que precisamos reduzir o uso de nossas tecnologias modernas para que possamos nos reconectar com os outros seres e a realidade – às vezes entediante – que nos cerca.
E precisamos até mesmo agradecer pelo tédio, pois sua simples presença indica que ainda temos algum ímpeto vital para transformar nossas vidas em algo de significativo para nós mesmos e para toda a sociedade. E, assim, talvez um dia nos habituemos a desaborrecer de maneira mais sábia e proveitosa.
André Islabão é médico, integrante do movimento Slow Medicine Brasil e autor dos livros Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bem, O risco de cair é voar e Entre a estatística e a medicina da alma – Ensaios não controlados do Dr. Pirro.