Foto: Reprodução/YouTube
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A morte assistida de Antonio Cicero, o poeta, crítico literário, letrista, filósofo e irmão da cantora Marina Lima, empurrou muita gente para uma conversa que quase ninguém quer ter.
Com Alzheimer ainda em estágio inicial, Antonio Cicero decidiu que deveria morrer antes de não reconhecer amigos e de não entender mais nada do que estava acontecendo ao seu redor.
O poeta foi morrer na Suíça, na hora e no dia em que decidiu ir embora, porque lá as pessoas podem levar adiante essa decisão planejada e compartilhada só com os seus.
Antonio Cicero deixou uma carta avisando sobre o que e por que faria para encerrar sua vida, e o companheiro dele, Marcelo Pies, disse depois:
“Morreu em paz, segurando a minha mão, muito tranquilo e sem nenhuma ansiedade. Depois do medicamento, ele dormiu e, em meia hora ou um pouco mais, morreu”.
O que é morrer em paz? É mais do que poder ir embora sem muito sofrimento. Nós, jornalistas, contamos como os outros morrem, nas mais variadas circunstâncias, mas nos espantamos quando ficamos sabendo da morte inesperada de um de nós. Da chamada morte natural, sem o trauma de um acidente ou de longos tratamentos em casos crônicos ou terminais.
Meu amigo jornalista Lauro Schirmer, por exemplo, teve uma morte natural que muitos poderiam desejar. Chegou em casa à noite, serviu um prato com sopa e caiu morto na cozinha.
Tive muitos amigos que morreram sentados na sala de casa ou dormindo. Meu amigão Mauro Torales morreu vendo TV. Morrem num bar tomando cerveja e dando risada.
O magnata americano Nelson Rockefeller morreu fazendo sexo com uma secretária. Átila, o Rei dos Hunos, também teria morrido assim, na noite de núpcias com a noiva Ildico.
Há na internet todo tipo de texto sobre mortes serenas. Médicos lidam cotidianamente, em situações específicas, com a decisão de desligar aparelhos e deixar que a vida, sem o suporte de máquinas e medicamentos, diga se quer e pode continuar ou não.
Faço parte de uma geração que viu morrerem, das chamadas causas naturais, todos os que vieram muito antes. Avós, pais, tios, vizinhos. Morriam os conhecidos já idosos. Os velhos iam embora de repente com 60 anos. Sim, com 60 eram velhinhos.
Mas agora somos nós a geração que passa a ser observada como a que está se indo, às vezes de repente. É a geração que, também como todas as anteriores, começa a falar em voz alta e em grupos sobre seus males.
Fala sobre envelhecimento, colesterol, triglicerídeos, PSA e exames de ultrassom, em trocas de informações, nas confrarias, para todo mundo ouvir, os amigos e os inimigos. E fala também sobre o melhor jeito de morrer.
Morrer de causas ditas naturais e de repente, sem muita dor e sofrimento, não é assunto para quem é jovem e forte. Mas é para quem se dá conta da finitude logo adiante.
É tabu, é coisa que não se deve abordar, é assunto mórbido ou macabro, é o que alguns dizem. Mas não é. Estamos devagar no enfrentamento da morte, muito atrás de outros povos, entre os quais os indígenas que consideramos ‘atrasados’.
Estamos distantes dos suíços que acataram o direito de Antonio Cicero de se despedir ainda com o que lhe restava de lucidez e de lembranças.
Antonio Cicero preferiu viver até onde achava que haveria memória, que em muitos casos é só o que resta para quem chegou à velhice. A memória que mantém alguém vivo pode ser o que de melhor alguém pode ter no fim da vida.
E Antonio Cicero queria dispor do que ainda tinha de memória para poder deliberar que essa era a hora de morrer com dignidade e ao lado do companheiro. Mas a maioria não dispõe desse direito, por não poder contar nem mesmo com muitos dos direitos para viver com dignidade.
O que Antonio Cicero nos disse é que o melhor jeito de ir embora deveria ser, em casos extremos, como foi o seu, resultado de uma decisão íntima de cada um.
Mas sem que se confunda o desejo de ir embora, como no caso de Cicero, com a situação de pessoas em situações de desalento, depressão e desespero.
Sem jamais comparar as circunstâncias enfrentadas pelo poeta com situações vividas principalmente por jovens que pedem socorro. Sem discriminar e sem romantizar essa decisão drástica.
Que um dia não muito distante todos em situações semelhantes à de Antonio Cicero tenham pelo menos o direito da dúvida sobre viver ou morrer, sem preconceitos morais e religiosos e sem julgamentos alheios.
Se Antonio Cicero decidiu que fazer poesia era o seu melhor jeito de viver, que pudesse dispor também do melhor jeito de morrer.
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O Centro de Valorização da Vida (CVV) promove apoio emocional e prevenção do suicídio, com atendimentos gratuitos a qualquer pessoa.
O centro garante sigilo total e atende por telefone, e-mail e chat 24 horas por dia, nos sete dias da semana, pelo telefone 188.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.