A arte de evitar doenças e a eterna busca por uma vida sem males
Retrato de Dr. Gachet, de Vincent van Gogh; versões 1 e 2 - 1890
Retrato de Dr. Gachet, de Vincent van Gogh; versões 1 e 2 - 1890
Evitar o aparecimento das mais variadas doenças e o desconforto delas decorrente é um sonho antigo da humanidade. Essa eterna busca por uma vida sem doenças acabou dando origem aos meses coloridos que vemos um após o outro em nosso calendário cada vez mais povoado pelas conscientizações de doenças.
Temos meses e cores para todo tipo de mal-estar imaginável, o que beira a insanidade. Apesar disso, basta lançarmos um olhar cuidadoso sobre a sociedade e veremos que, apesar de tantas campanhas coloridas, a triste realidade é que a prevalência dessas doenças segue aumentando de maneira constrangedora.
Isso ocorre porque as famosas campanhas de prevenção de doenças, com seus meses coloridos, de prevenção verdadeira têm muito pouco. O que essas campanhas fazem – na melhor das hipóteses – é aumentar a detecção de doenças já existentes em suas fases mais iniciais, o que pode ser positivo em nível individual, embora isso nem sempre seja verdade em nível populacional.
Considerando as campanhas na população como um todo, o preço para detectarmos alguns poucos casos de uma determinada doença em fase mais precoce e, portanto, mais passível de ser curada, é detectarmos inúmeros casos falso-positivos (alarmes falsos de doenças inexistentes com toda a consequente ansiedade e o risco de procedimentos desnecessários) e de doenças indolentes que jamais ameaçariam a vida daquelas pessoas diagnosticadas.
Apesar disso, criamos uma indústria de “prevenção de doenças” e de meses coloridos que nos bombardeia constantemente com mensagens geralmente bem-intencionadas, embora nem sempre baseadas em evidências científicas que justifiquem a sua manutenção no colorido calendário anual. Um exemplo disso é o famoso “novembro azul”: embora ainda vejamos anúncios alertando para a necessidade de os homens realizarem os exames preventivos, nem o Ministério da Saúde nem o Instituto Nacional do Câncer defendem a campanha em seus moldes atuais de prevenção da doença em todos os homens a partir dos 50 anos de idade.
A visão mais parcimoniosa que essas instituições pretendem difundir é de que as campanhas envolvam outras doenças além do câncer de próstata (como as doenças cardiovasculares) e que a decisão sobre a realização de exames seja individualizada conforme o risco pessoal, em vez de ser aplicada igualmente a todos os homens.
Talvez o maior problema criado pela indústria dos meses coloridos seja o de nos afastar das reflexões necessárias sobre as principais causas de doença na sociedade e sobre as melhores maneiras de reduzir sua prevalência, o que pode fazer perpetuar entre nós os hábitos prejudiciais que causam diversas doenças.
Note que, se entendermos por “prevenção de doenças” a redução de sua prevalência em uma determinada população, então nenhuma campanha colorida parece prevenir doenças, mas apenas detectá-las de forma mais precoce e, eventualmente, evitar algumas de suas complicações tardias.
Prevenir doenças – no sentido de reduzir sua prevalência na população – é algo bem mais abrangente e desafiador do que a realização deste ou daquele exame anual de utilidade duvidosa.
Consideremos, a título de reflexão, algumas das principais condições clínicas que acometem e assustam a humanidade atual – como as doenças cardiovasculares, a obesidade, o diabetes, a depressão e vários tipos de câncer – e veremos que todas elas estão em alguma medida ligadas ao nosso estilo de vida moderno. Assim, qualquer tentativa de “prevenir doenças” que não passe pela mudança de nossos atuais hábitos de vida prejudiciais só poderia ser um tremendo fracasso.
A verdadeira prevenção de doenças (a chamada “prevenção primordial”) passa pela adoção – ou pelo estímulo subliminar para a ampla adoção – de hábitos de vida mais saudáveis.
E o que essa visão mais abrangente da prevenção tem de melhor é que as mesmas mudanças de hábitos que reduzem a prevalência de uma doença podem também diminuir a prevalência de vários outros males.
Tomemos, como exemplo, a prática regular de alguma atividade física ou a adoção de uma dieta mais saudável que evite alimentos ultraprocessados e que seja rica em produtos de origem vegetal, naturais e orgânicos, que forneça as calorias necessárias e sem excessos. Tais hábitos trariam efeitos benéficos não apenas sobre as taxas de obesidade da população, mas também sobre a prevalência de diabetes, doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer.
Algumas vezes a prevenção de doenças passa pela restrição de alguns hábitos indubitavelmente nefastos, como é o caso do tabagismo. As campanhas que restringiram o tabagismo na sociedade há algumas décadas foram capazes de obter reduções expressivas na prevalência do câncer de pulmão, algo que jamais seria alcançado se tivéssemos optado simplesmente por fazer exames de rastreamento periódico para câncer de pulmão entre os fumantes ou na população geral.
Infelizmente, a indústria do tabaco reagiu há alguns anos com uma campanha de disseminação dos cigarros eletrônicos que atinge em cheio a população mais jovem e pode anular em pouco tempo todo o benefício alcançado pelas políticas antitabagismo anteriores.
Assim, prevenir algumas das doenças mais comuns da atualidade é algo que se faz com alterações dos hábitos da própria sociedade.
Fazemos a prevenção verdadeira de doenças quando trocamos os alimentos ultraprocessados por alimentos saudáveis em casa e nas cantinas das escolas, quando criamos áreas verdes nas cidades para as pessoas caminharem e respirarem ar puro, quando projetamos edifícios com escadarias convidativas para quem queira trocar o elevador pelas escadas, quando reduzimos a carga de agrotóxicos usados na agricultura, quando estimulamos o uso de bicicletas e caminhadas para a locomoção diária das pessoas, quando limitamos a propaganda de alimentos ultraprocessados nos meios de comunicação, quando melhoramos o acesso de toda a população a refeições mais saudáveis, quando desestimulamos hábitos nocivos como o tabagismo ou o uso excessivo de álcool, quando trocamos as redes sociais pela socialização verdadeira com abraços carinhosos e, claro, quando trocamos o atual imperativo da competitividade na sociedade por uma ética de colaboração e solidariedade.
E tudo isso é absolutamente passível de ser alcançado, embora envolva algum esforço de todos nós e não agrade àqueles que de alguma maneira lucram com a alta prevalência de doenças na sociedade.
André Islabão é médico, integrante do movimento Slow Medicine Brasil e autor dos livros Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bem, O risco de cair é voar e Entre a estatística e a medicina da alma – Ensaios não controlados do Dr. Pirro.