OPINIÃO

Governo tem recorde de arrecadação e aprofunda cortes de gastos sociais

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 27 de novembro de 2024

Governo tem recorde de arrecadação e aprofunda cortes de gastos sociais

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Você já parou para analisar por que razão, no mesmo dia em que foi divulgado um recorde histórico de arrecadação de tributos, o governo federal anunciou que fará mais um corte de gastos de cerca de R$ 6 bilhões em 2024 e novos cortes em 2025 e 2026?

Qual é a lógica de cortar gastos primários – que abrangem somente gastos em áreas sociais e na estrutura do Estado – se o governo federal tem registrado recordes de arrecadação tributária em todos os meses do ano, sendo que em outubro/2024 foi verificado o maior recorde desde 1995?

A resposta está no funcionamento do Sistema da Dívida que opera no Brasil, onde de fato está o rombo das contas públicas; rombo que tem aumentado ainda mais ultimamente devido à elevação brutal da taxa básica de juros pelo Banco Central – Selic –, que aumenta diretamente o custo com os juros da chamada dívida pública. Não há dinheiro que chegue para cobrir tamanho rombo! O Sistema da Dívida tem absorvido mais de 40% do orçamento federal, todos os anos, para alimentar seus mecanismos e juros mais elevados do planeta.

O sacrifício social para cobrir o rombo do Sistema da Dívida está presente nas contrarreformas (principalmente da Previdência), que adiam, suprimem ou cortam direitos sociais; nas privatizações do nosso patrimônio público e nos cortes de investimentos sociais feitos para cumprir teto de gastos e arcabouço fiscal sob alegação de “equilibrar as contas públicas”. Assim, estamos pagando essa chamada dívida pública de várias formas.

Os cortes de gastos sociais e na estrutura do Estado não surtem efeito para “equilibrar as contas públicas”, porque o problema do gasto excessivo não está na área social, e muito menos na estrutura do Estado.

A prestação de serviços públicos se encontra extremamente deficiente e a estrutura do Estado já está sendo sucateada em todas as áreas que observamos há anos: Saúde (vejam a carência pela qual o SUS passa, com filas para cirurgias e outros procedimentos vitais); Educação (com universidades tendo até energia elétrica cortada por falta de pagamento, além de diversas carências inacreditáveis); Meio Ambiente (que lida com falta de pessoal, e equipamentos em geral, inclusive para o combate a incêndios florestais e demais atividades imprescindíveis para a vida); Defesa Nacional (que sofre cortes que comprometem até atividades de monitoramento em fronteiras, favorecendo o tráfico de armas, drogas etc.), e vai por aí afora, o sucateamento está presente em todos os ministérios e diversos órgãos, a exemplo do que ocorre no INSS e no IBGE, por exemplo, abrindo espaço para nocivos projetos de privatizações.

Portanto, não existe a tão falada “gastança com programas sociais ou com a estrutura da máquina pública”, repetida à exaustão pela grande mídia, que cobra que o governo federal corte cada vez mais os recursos destinados às áreas sociais, porém, não menciona que a causa da gastança está no pernicioso funcionamento do Sistema da Dívida no Brasil. Ao contrário, apelam para o senso comum das pessoas de forma maliciosa e desonesta, pois inúmeras matérias da grande mídia comparam o Sistema da Dívida com a obrigação contraída por uma família que teria se descontrolado em compras e que, por isso, depois, teria fazer sacrifícios, cortar idas ao cinema e outros gastos para sobrar dinheiro para cobrir seus gastos excessivos. São coisas completamente distintas e tal comparação chega a ser perversa.

No caso das contas públicas, a gastança está no Sistema da Dívida, cujo crescimento decorreu de seus próprios mecanismos e juros elevados e não de investimentos públicos na estrutura do Estado ou em áreas sociais, como declarou o representante do Tribunal de Contas da União (TCU) em audiência pública realizada no Senado Federal em 2019: “Nenhum investimento foi feito com recursos da emissão de títulos públicos… essa informação é do Tesouro”.

Adicionalmente, é preciso recordar que durante 20 anos, o Brasil produziu R$ 1 trilhão de superávit primário. Isto significa que durante 20 anos gastamos, com toda a manutenção do Estado (todos os poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e Ministério Público) e com todos os serviços públicos prestados à população (saúde, previdência, assistência, educação etc.), R$ 1 trilhão a menos do que arrecadamos em tributos.

E o que aconteceu com o estoque da dívida pública federal nesse mesmo período?

  • Em 1995, o estoque da dívida interna federal era de apenas R$ 86 bilhões.
  • Em 2015, o estoque dessa dívida alcançou R$ 4 trilhões!

Ora, se produzimos R$ 1 trilhão de superávit primário naquele período, é evidente que o crescimento do estoque da dívida não decorreu de gastança alguma nos investimentos sociais e estrutura do Estado, mas sim no próprio Sistema da Dívida, principalmente com seus mecanismos e juros abusivos.

A partir de 2015 passou a ser divulgado um falacioso déficit primário, obtido porque deixa fora do cálculo diversas receitas públicas, distintas da emissão de títulos e que são desviadas diretamente para o pagamento dos gastos com o Sistema da Dívida e seus mecanismos e juros abusivos. Se a conta for feita corretamente, não existe o falacioso déficit.

Cada dia fica mais evidente a necessidade de enfrentamento do Sistema da Dívida por meio da ferramenta da auditoria, que deverá ser feita de forma integral e com ampla participação social. Se não for feito esse enfrentamento, entra governo e sai governo, seguimos submetidos ao mesmo Sistema da Dívida, que exige contínuos cortes de investimentos sociais, privatizações e contrarreformas, aprofundando a escassez no Brasil da abundância… Somos um país riquíssimo e temos tudo para sermos uma grande Nação, porém, o Sistema da Dívida tem travado o nosso desenvolvimento socioeconômico de forma estrutural. Auditoria já!

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.

 

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