OPINIÃO

O apagador de pirâmides

LUIS FERNANDO VERISSIMO / Publicado em 25 de novembro de 2024

O apagador de pirâmides

Arte: Edgar Vasques

Arte: Edgar Vasques

Descobriram que o cérebro do Einstein tinha uma anomalia. Uma deformação justamente na área que a gente usa para pensar no Universo e fazer cálculos abstratos, e que nele era maior do que o comum. De modo que você não precisa mais se sentir humilhado com os feitos mentais do homem que não apenas deduziu as leis da matéria como “sacou”, no sentido de tirar do nada, teorias que só agora estão sendo comprovadas. Da próxima vez que mencionarem o gênio de Einstein na sua presença, você pode dizer: “Também, com aquele cérebro, até eu.”

Mas o tamanho do cérebro não determina, necessariamente, o tamanho da inteligência. O homem de Neandertal, que até pouco tempo era considerado nosso antepassado (hoje se especula que é o antepassado só de jogadores de rúgbi, aqueles cujo capacete protetor é o próprio crânio, e do Jair Bolsonaro), tinha um cérebro maior do que o nosso, além de uma estrutura óssea e muscular mais desenvolvida, mas não conseguia nem falar e deu em nada como espécie. Há uma tese segundo a qual, como o seu tempo de gestação era mais longo, o homem de Neandertal já nascia pronto e não precisava daquele período em que a gente depende totalmente da mãe, com o pai fazendo papel de palhaço do lado e a vovó atrás dando palpite, que é quando se forma a cultura humana. E com todo o seu tamanho, o cérebro do homem de Neandertal não tinha nenhum dispositivo para a fala. Sem uma linguagem, ele foi um fracasso. A espécie durou 80 mil anos e desapareceu sem deixar um vaso, um palito, um chaveirinho. Só os seus grandes ossos.

Outra tese é que em todo embrião humano, até um certo estágio, o cérebro cresce como o de um embrião de Neandertal. Se não fosse a interferência de um novo código genético que cancela o primeiro, nasceríamos com o mesmo tipo de cérebro e ainda estaríamos nos comunicando às tacapeadas. As novas instruções são para o cérebro sofrer uma espécie de depuração, em que ele é, para todos os efeitos, editado. Fica um cérebro menor, mais compacto, mais ágil e, o que é o principal, com espera para a fala. Há nisso uma lição da biologia para os autores muito prolixos: cortem, cortem. O cérebro humano é o exemplo mais bem acabado que existe das virtudes de uma boa revisão. E a predisposição para a síntese está nas nossas células.

Uma área fascinante da neurologia que não recebe a atenção merecida, ou recebe e eu é que não sei, é a da somatização. Da doença imaginária que o corpo, por assim dizer, encampa e desenvolve. Muito da história do mundo – certamente da história da religião – pode ser explicado pelo fenômeno da somatização, que não deixa de ser uma forma de milagre. Numa gravidez histérica a menstruação é interrompida, a barriga cresce durante nove meses e sua única diferença de uma gravidez real é que o bebê não está no ventre, mas no cérebro da mulher. Se o cérebro tem esse poder, então quem tem poder sobre o cérebro pode tudo, inclusive curar a doença imaginada e somatizada. Aí a diferença entre o charlatão e o facultativo – ou o santo – fica difusa. Tão difusa quanto a diferença entre o mal que existe mesmo e o mal que está só no cérebro do “doente”. Ou o mal que paralisa ou faz ferida é menos mal por ser imaginado? A questão é definir o significado de “existe mesmo”. Uma alucinação é tão real quanto o que “existe mesmo”, para o alucinado.

Num espetáculo de hipnose, a admiração das pessoas é geralmente dirigida para o lado errado. Não há nada de incomum no hipnotizador, que pode ser qualquer um. Você hipnotiza quem quiser, desde que o outro esteja convencido de que você pode. Pegue alguém na rua, introduza-o num grupo como Salam, o Mago Hipnotizador, com ou sem turbante, e imediatamente metade do grupo estará pronta para dormir, virar tábua, imitar uma galinha ou fazer qualquer outra coisa que ele mandar. O extraordinário na hipnose é essa vulnerabilidade da mente humana, esta avidez inconsciente pelo autoabandono e pelo controle por outra. Nem o ceticismo e a racionalização garantem sua defesa: você pode saber que o Salam é falso e não tem poder mágico algum, mas o seu cérebro – ou aquela parte do seu cérebro que você não conhece, e que nem lhe pertence – pode ter outra ideia, e se entregar. O seu cérebro pode estar apenas esperando uma voz de comando. Qualquer voz  de comando.

O terrível não é que a gente nunca sabe o que os outros têm na cabeça. O terrível é que não sabemos o que nós temos na cabeça. Apenas portamos as mensagens, que não abrimos, que estão sob a nossa guarda, mas não são para o nosso conhecimento. Nossa sina na Terra é a mesma dos carteiros honestos.

O último paradoxo é que o cérebro humano é uma coisa tão complexa que nem o cérebro humano consegue entendê-lo.

E chegamos a Jorge Luis. Ninguém como o Borges descreveu como todo o mundo está no nosso cérebro, ou como o nosso cérebro é todo o mundo. Tem um poema em que ele diz que, com a sua morte, apagará as pirâmides, nem uma estrela restará na noite e nem a  noite sobrará, e que com ele morrerá o peso do Universo. E que o seu legado será o Nada, para ninguém.

*As crônicas desta coluna são republicações do acervo do autor cedidas ao Extra Classe. 

Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.

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