Imagem: Canva IA
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Ricardo Piglia, extraordinário escritor argentino, nos legou uma obra densa e surpreendente. Em Respiração Artificial, romance escrito em plena ditadura e, por isso, com forma labiríntica, um dos personagens, o professor Marcelo Maggi, tinha um método especial de pensamento, um caminho de notável efeito para reduzir as chances de erro: pensava sempre contra si próprio, porque desconfiava de si mesmo. “Somos adestrados durante um tempo excessivamente longo na estupidez e, no fim, ela se transforma em uma segunda natureza. A primeira coisa que pensamos está sempre errada, é um reflexo condicionado”, dizia. Lembrei dessa passagem ao ler algumas opiniões a respeito do que ocorreu nas eleições municipais, porque tive a sensação de que seria importante se mais analistas no Brasil tentassem o método do personagem de Piglia.
Primeiro, para que possamos nos afastar de nossos reflexos condicionados, é preciso lidar com fatos. Eles não estão dados e não falam por si, mas é preciso a disposição de identificá-los desapaixonadamente. Em um processo eleitoral, o fato mais relevante é traduzido em números.
Apenas para ter presente a dimensão da encrenca, bastaria lembrar que o PL, partido que encarna mais amplamente o ideário da extrema direita, fez 15,7 milhões de votos nas disputas majoritárias no primeiro turno (crescimento de 236% desde 2020), enquanto o PT fez 8,9 milhões. Entre os partidos que compõem a vertente mais tradicional da direita, o PSD de Kassab fez 14,5 milhões de votos. Em número de votos, o PT é hoje o sexto partido mais votado do Brasil; os cinco primeiros são de direita.
Os números atestam uma ampla vitória da direita e da extrema direita e permitem identificar que: 1) a disputa mais ampla, em escala nacional, não se deu entre direita e esquerda, mas entre direita e extrema direita; 2) o campo político-ideológico vitorioso nessa disputa foi o da direita tradicional, abrigada no “Centrão”, mais precisamente a “direita PIX” articulada historicamente pelo clientelismo e pela compra de votos.
Não há receita para se retirar a política brasileira do buraco onde se encontra, mas, talvez, ajude lembrar que as disputas políticas ocorrem em uma espécie de tabuleiro aberto de xadrez, onde, ao invés de um jogo com dois adversários, temos muitos jogos simultâneos, com milhares de peças e jogadores, todos atentos aos movimentos dos demais e procurando se antecipar às estratégias em curso. Um movimento em falso com uma de nossas peças aumenta as chances dos demais jogadores. A paralisia também cria cenários de fragilidade, de modo que não jogar é má opção e assim sucessivamente.
Por isso, toda avaliação política que começa com o rol das manobras dos adversários e com a descrição das condições que os favorecem no jogo já começa torta, porque perde o mais importante: a dinâmica que foi tornando possível o avanço dos adversários e estreitando nosso campo de ação. O que ocorre agora é sempre um resultado cuja possibilidade começou a se delinear pelas peças movidas muito antes, não raro muitos anos antes.
Em setembro, no artigo O poço não tem fundo, publicado neste espaço, chamei a atenção para alguns obstáculos teóricos que a esquerda brasileira se recusa a enfrentar e que têm cobrado um preço político cada vez maior, como o seu alinhamento com regimes autocráticos, e apontei um tema que me parece central e que diz respeito ao posicionamento dos partidos progressistas que abdicaram, há muitos anos, de lutar por reformas e se transformaram em “defensores das instituições”, entregando para a extrema direita o discurso contra a corrupção, contra os privilégios e contra a ineficiência do Estado.
A esquerda brasileira precisa operar uma virada histórica de conteúdo, de prática política e de identidade simbólica, sob pena de ser conduzida à margem. O sentido dessa virada demanda a estruturação orgânica de uma Frente Ampla. Nesse movimento, partidos como PSOL, PT, PCdoB, PV, PSB, REDE e PDT, que atuam sem plataforma comum e sem discurso capaz de mobilizar a população na luta por reformas, seriam alas de um movimento de resistência democrática. Neste cenário histórico, a meta deve ser a de isolar os extremistas, o que demanda posição clara em torno de políticas públicas eficientes em áreas centrais, como segurança pública, por exemplo, outro tema entregue em uma bandeja aos neofascistas. Por óbvio, se a meta for derrotar a extrema direita, isso exigirá alianças com a direita tradicional. Sem essa disposição, o “Centrão” seguirá sendo imantado pelos extremistas, o que, além de amassar a esquerda, poderá conduzir o Brasil a uma teocracia miliciana.
PS – O título desta crônica é uma referência, um pouco irônica, ao Que Fazer? (1902), de Lênin, que li em minha adolescência e que tem apenas importância histórica. Lembrando do livro, entretanto, me dei conta de que aquele Vladimir Ilyich Ulianov, independentemente de qualquer avaliação sobre sua obra, pensava contra si mesmo e contra grande parte da tradição marxista de seu tempo. Pensar talvez não doesse tanto naquela época.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.