Big Pharma, uma invenção norte-americana
Foto: Freepik/CC2.0
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Tanto o apoio estatal quanto as guerras que o país enfrentou ajudaram o nascimento da indústria farmacêutica nos EUA. A Pfizer foi fundada em 1849 por dois químicos imigrantes alemães e seu negócio expandiu-se rapidamente durante a Guerra Civil. Outro personagem histórico foi o coronel Eli Lilly que serviu na mesma guerra e, após seu término, em 1876, abriu a empresa farmacêutica que, até hoje, leva seu nome. Outro militar na história da indústria farmacêutica nos EUA foi Edward Squibb, que foi médico naval durante a guerra mexicano-americana, fundou sua empresa em 1858 e também colaborou na Guerra Civil.
No século XX, ao final da Primeira Guerra Mundial, a Bayer (alemã) teve a marca registrada da aspirina e seus ativos apreendidos nos EUA, enquanto a Merck foi compulsoriamente separada de sua matriz, também alemã.
Durante a 2ª Guerra Mundial, aquela que foi, talvez, a descoberta farmacêutica de maior impacto na história, a penicilina, teve sua produção industrial integralmente comprada pelo governo norte americano por ocasião da entrada dos EUA na guerra. A produção industrial foi realizada por várias empresas, incluindo Merck, Pfizer e Squibb.
A Big Pharma norte americana é hegemônica no mundo
É flagrante a hegemonia mundial da Big Pharma dos Estados Unidos da América (EUA). Em 2023, o mercado mundial de medicamentos atingiu cerca de 1,5 trilhão de dólares. Nesse mercado, em 2021, seis dentre as 10 campeãs de vendas eram norte-americanas. Aliás, o mercado farmacêutico nos EUA (2022) responde por 42,6% do mercado mundial. Finalmente, dentre todos os setores que fazem lobby junto ao Congresso e governo nos EUA, a Big Pharma é, de longe, a que mais despende recursos. Foram 378,6 milhões de dólares em 2023.
A hegemonia da Big Pharma norte americana não é apenas produtiva e comercial, mas também política. Isso ficou marcado com a regulação global da Propriedade Intelectual (PI) ocorrida em 1994 com a assinatura do acordo TRIPS (Agreement on Trade- Related Aspects of Intellectual Property Rights), no bojo da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995. O ingresso na OMC foi vinculado à assinatura do TRIPS.
Esse movimento político e diplomático teve na indústria farmacêutica norte-americana um papel de grande liderança, associada com farmacêuticas de outros países detentores de grande número de patentes. O TRIPS enquadra o regime mundial de PI segundo regras draconianas, prevendo, inclusive que o descumprimento de seus dispositivos deve ser questionado apenas na própria OMC.
O papel das farmacêuticas norte-americanas durante a pandemia de Covid, ao atuar na OMC contra a concessão de um waiver nas patentes de vacinas anti Covid proposto por Índia e África do Sul, confirma essa liderança.
A Big Pharma e a financeirização: um rizoma empresarial
O rizoma é um termo botânico que define um caule subterrâneo que se organiza em rede; esse conceito foi estendido à filosofia por Gilles Deleuze e Pierre-Félix Guattari.
Dito isso, o deslocamento da indústria farmacêutica em direção a tornar-se uma Big Pharma não foi um movimento exclusivo dela. Ele se deu pari passu (simultaneamente) ao processo de financeirização das relações econômicas mundiais operado sob a liderança dos EUA.
Resumidamente, a financeirização nas farmacêuticas significou subordinar os objetivos precípuos da empresa a outros, de ordem exclusivamente financeira, e isso se deu mediante aumentos significativos do pagamento de dividendos a grandes acionistas (investidores institucionais) em detrimento de investimentos em infraestrutura, P&D e produção. Esses acionistas são atores fora do corpo dirigente das empresas, acima dos executivos, e seus interesses não têm ligação direta com a produção de medicamentos.
Em outros termos, são atores que governam os que deveriam governar. São pessoas jurídicas representantes de grandes conglomerados financeiros – bancos, fundos de investimento, patrimônios de famílias muito ricas, etc. Além disso, esses investidores se organizam como um rizoma, pois atuam em múltiplas empresas e dão origem ao que é conhecido como ‘propriedade comum’, que é generalizada na indústria farmacêutica dos EUA.
Em 2014, por exemplo, o maior investidor nas então três maiores empresas farmacêuticas (Johnson & Johnson, Merck e Pfizer) foi o mesmo (BlackRock, Inc.). Essa é a regra, não a exceção. (Fonte: Banal-Estanol, A. et al. – Common Ownership in the US Pharmaceutical Industry: A Network Analysis. November 25, 2020. Forthcoming in the Antitrust Bulletin 66, 1, Spring 2021. Symposium title: Common Ownership: Illuminating a Great 21st Century Antitrust. )
Essas três empresas farmacêuticas compartilham outros grandes investidores que, por sua vez, participam como investidores em várias outras farmacêuticas.
Desse rizoma de interesses exclusivamente financeiros resulta que quem define muitas das estratégias das farmacêuticas são esses investidores e não os executivos (presidentes e diretores). E que, se investidores compartilham farmacêuticas e vice-versa, além de estratégias eles podem estar definindo também decisões executivas.
Em paralelo ao aprofundamento da financeirização e da nova regulação global da PI, nas décadas de 1980 e 1990 a indústria farmacêutica testemunhou, atuou e usufruiu de um conjunto de novos conceitos e práticas científicas, tecnológicas, organizacionais, produtivas e comerciais que estabeleceram sua face atual de Big Pharma.
A primeira delas foi a explosão científica ocorrida com a constituição da família das “ômicas” – genômica, proteômica, etc. – apoiada pelo National Institutes of Health (NIH) que, entre outros avanços, abriu novas avenidas na compreensão da interação entre medicamentos e o organismo humano.
A tradução tecnológica dessas conquistas foi o desenvolvimento de uma nova rota para a produção de medicamentos, da síntese química para a biotecnologia. A introdução da biotecnologia nas farmacêuticas colocou um desafio para empresários e técnicos formados no ambiente da química fina, superado com a absorção de ativos e know-how existentes em empresas que dominavam a nova rota: os fabricantes de vacinas.
Atualmente, várias dentre as maiores fabricantes mundiais de vacinas são propriedade da Big Pharma. Outra mudança ocorreu mediante uma radical desverticalização das empresas, chamada de Business Process Outsourcing, que vem resultando em terceirização de praticamente toda a atividade produtiva, incluindo a invenção, o desenvolvimento, a produção, a pesquisa clínica, o registro, o marketing e as vendas de produtos. A razão principal dessa estratégia de organização é o compartilhamento de riscos visando a economia de custos, providência necessária a qualquer empresa, mas muito mais necessária em um ambiente onde a remuneração aos grandes acionistas é um objetivo central. O único item não terceirizado é a propriedade das patentes que garantem a PI dos produtos.
Outra dimensão cada vez mais presente nas estratégias da Big Pharma é a inflação nos preços de medicamentos. Ao lado de alguns fatores objetivos em relação ao aumento de custos, há certamente elementos derivados dos mecanismos da financeirização e das regras de PI, como incluir os custos dos insucessos no desenvolvimento de produtos que fracassaram no caminho até o registro na precificação de um produto que chega ao mercado.
Terapias para doenças raras entram cada vez mais no negócio da Big Pharma. São doenças muito graves e para as quais não existem medicamentos eficazes. O alto risco tecnológico embutido na transformação de candidatos a medicamentos ou terapias em produtos no mercado e a gravidade das doenças às quais se destinam faz com que eles sejam lançados a preços não sustentáveis para pacientes, suas famílias e mesmo sistemas de saúde.
Essas notas sobre o desenvolvimento da Big Pharma com a proeminência dos EUA devem ser entendidas como um caso particular de um modo de relacionamento entre as nações que originou a unipolaridade geopolítica, a globalização e o neoliberalismo. Foi essa conjuntura que sobredeterminou, tanto a financeirização das empresas farmacêuticas, quanto a instituição de um padrão mundial harmonizado de PI, que vêm sendo os dois principais pilares organizacionais, políticos e ideológicos do atual modo de funcionamento da Big Pharma.
Reinaldo Guimarães é médico, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ e Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Foi professor e pesquisador na Área de Saúde Coletiva na UFRJ e desde 1985 trabalha no campo do Planejamento, Gestão e Políticas de Ciência e Tecnologia e de Saúde, além de ter atuado como Pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada à Saúde (Nubea/UFRJ).
Este artigo foi publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, novembro de 2024.