E quando seu filho se apaixonar por um robô?
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Crianças podem filmar adultos que defendem posições políticas consideradas nocivas às suas crenças infantis e às suas famílias? Uma criança e um adolescente têm como discernir se um adulto está certo ou errado sob o ponto de vista político?
Alguns pais acham que sim, principalmente os que têm vínculos com ideias de extrema direita. São pais ‘libertários’, desde que as liberdades sejam apenas as deles e das turmas próximas do que eles pensam.
Pois esse é o debate que divide até a direita brasileira. As crianças são os estudantes. Os adultos filmados por elas são os professores. A Câmara dos Deputados aprovou essa semana, na Comissão de Constituição e Justiça, um projeto que restringe o uso de celulares em salas de aula, da educação infantil ao ensino médio.
Só restringe, mas não proíbe, como era a proposta inicial. Por que só restringe? Porque parte dos parlamentares acha que, em situações excepcionais, o celular pode ser usado.
Pode ter uso para fins pedagógicos, é óbvio, sob orientação de educadores, para ajudar alunos com deficiências, para situações de perigo ou “em caso de força maior”.
Crianças e adolescentes vão poder portar o celular e usar nesses casos em que cabe qualquer desculpa para o uso excepcional. Vão poder filmar professores que eles achem que pregam o comunismo? Vão poder, com vídeos com a edição de falas, dedurar os professores?
É possível prever que, por incentivo de deputados da direita extremada, é o que continuará acontecendo. Porque eles, mesmos divididos, acredita que seus filhos têm todos os direitos, em nome da proteção da família, da moral e das liberdades.
Mesmo que o que esteja mais ameaçado pelo uso de celulares por crianças, segundo o psicólogo e pesquisador americano Jonathan Haidt, seja exatamente esse conceito de família libertária que tudo cede aos filhos. As crianças dessas famílias estão em risco.
Haidt é autor de estudos sobre os danos do acesso a todo tipo de conteúdo da internet por crianças da chamada geração Z. São os nascidos entre 1995 e 2010. Elas informam em pesquisas sofrer hoje de um mal que não atingia crianças e adolescentes como atingem no século 21. Elas sofrem de ansiedade, não por acaso escolhida a palavra do ano no Brasil em pesquisa do Instituto Ideia.
Haidt trata exatamente disso. Escreveu A geração ansiosa (Companhia das Letras) e dia desses deu entrevista ao Roda Vida, da TV Cultura. O que ele nos mostra é um cenário de terror, por confirmar indícios e suspeitas com os dados dos seus estudos.
Crianças e adolescentes estão com pressa. Não conseguem se concentrar. Não conseguem ler um texto de meia página. Evitam interagir presencialmente. Muitos, por insegurança e solidão crônica, não conseguem namorar. É provável que venham a ser adultos sem confiança neles mesmos.
Porque os pais que os vigiaram demais, achando que de fato os protegiam, são os mesmos permissivos que terceirizam cuidados ao permitir acesso total e irrestrito a celulares e à internet.
Mas o que esse fenômeno tem de diferente de outros saltos tecnológicos, como o do telefone e da TV? Porque desta vez os maiores danos são sofridos pelas crianças. E porque, pela primeira vez, ao contrário do que acontece com qualquer outro produto ou serviço que possa causar danos, a internet é incontrolável. É uma terra sem lei, pelo poder político e econômico das suas organizações.
Prevalecem as posições alegadamente libertárias de grupos de extrema direita, em especial nos Estados Unidos de Elon Musk e Donald Trump. E o que se impõe é a combinação sempre tóxica de arrogância, preconceito, perseguição aos discordantes, retórica alegadamente ultraliberal e ignorância.
Os pais não sabem o que os filhos estão vendo nas redes? Sabem e fingem não saber que há subterrâneos na internet e que a maioria dos conteúdos tem estímulos viciantes e ao mesmo tempo convidam à dispersão, ao déficit de interação social e à pressa em meio a uma aparente calmaria. Muitas vezes com a exposição de conteúdo sexual e a abusos por parte de adultos.
É por isso que adolescentes submetidos às pressões da expectativa de um estágio, por exemplo, levam a mãe para as entrevistas. Por não se sentirem em condições de aguentar os desconfortos das frustrações no mundo real.
Além do que já se sabe, Haidt prevê que, por insegurança nas interações de afeto reais, meninos e meninas vão estabelecer relações problemáticas com robôs produzidos por inteligência artificial, como se fossem namorados, assim como hoje, em alguns países, adultos vivem com bonecos infláveis cada vez mais semelhantes aos humanos.
Adolescentes ansiosos e solitários vão se apaixonar pela máquina, com a qual imaginam, sem noção dos riscos envolvidos, que talvez possam conversar sempre sem maiores frustrações e gestos de rejeição.
Haidt lembra o que a internet diz de várias formas e todos os dias aos jovens: “Se você não consegue olhar uma menina nos olhos, não sabe paquerar, nunca aprendeu porque é tímido e solitário, então arrume uma namorada na inteligência artificial”.
O americano lembra que, no Vale do Silício, no reduto da produção tecnológica virtual, pais enviam os filhos a escolas onde a tecnologia disponível é controlada, ou seja, o celular e a internet. Ele cita o exemplo da escola Waldorf, da Califórnia, onde as crianças são estimuladas a conviver e a criar no mundo analógico, e não na realidade virtual.
Nos Estados Unidos das liberdades quase totais, alguns pais contratam babás que se comprometem, por contrato assinado, que não irão manusear seus celulares na frente das crianças da casa.
Mas basta? O que fazer? Esperar que pais e escolas transfiram às crianças informações suficientes sobre os danos e que todos, famílias e professores, definam seus limites? Não. Haidt defende que leis devem estabelecer barreiras. Como já acontece na Austrália e em outros países.
O que ele propõe: que até os 13 anos as crianças sejam proibidas de ter acesso ao celular. E que só tenham direito de acesso às redes sociais a partir dos 16 anos.
Se não for assim, só vai piorar. Porque daqui a pouco, não daqui a uma década, mas a dois ou três anos, nem mesmo um adulto saberá, com a evolução da inteligência artificial, o que é e o que não é real, ou o que é e não é ético, razoável, legal ou moralmente aceitável, em relação a questões básicas das convivências. Uma criança poderá saber?
Como fazer controles de acesso por idade, que impeçam danos maiores? Sabe-se que é tecnicamente possível, por imposição de lei, mas as quatro grandes corporações, as chamadas big techs, que dominam esse mundo, não querem saber de amarras e limitações. Mas amarram o Congresso e as instituições.
As redes sociais, diz o pesquisador, estão ajudando a destruir a democracia americana. E com suas posições ‘libertárias’, os pais estão destruindo a saúde mental dos filhos e a perspectiva de futuro para os que serão adultos inseguros, ansiosos e deprimidos. A extrema direita, que acha que pode tudo, inclusive usar os filhos para perseguir professores, está vencendo.
E agora, para encerrar, o que talvez mais surpreenda e ao mesmo tempo console. As pesquisas com crianças e adolescentes revelam que metade deles gostaria que as redes sociais não existissem.
Segundo Haidt, as crianças estão dizendo: talvez fosse melhor viver num mundo real sem esse mundo virtual e artificial que nos vicia e nos deixa dispersos, solitários e ansiosos, apesar da sensação de que temos uma multidão sempre a nossa disposição. As crianças estão pedindo socorro.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.