OPINIÃO

Ainda sobre a militarização das escolas públicas brasileiras

Por José Luís Ferraro / Publicado em 16 de janeiro de 2025

Ainda sobre a militarização das escolas públicas brasileiras

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Na década de 1970, Michel Foucault realizou uma crítica ao sistema penal quando problematizou o nascimento das prisões. Ele não se limitou a descrever mudanças jurídicas, mas analisou as relações de saber-poder que transformaram a administração da punição entre os séculos XVIII e XIX. Foi em sua obra intitulada Vigiar e Punir que o filósofo mostrou como o modelo de punição espetacular, que utilizava a violência pública para reafirmar o poder soberano, deu lugar a um sistema disciplinar que, desde então, tem buscado moldar comportamentos, produzindo formas de assujeitamentos e subjugações “mais sutis”.

Neste livro, Foucault descreveu a transição entre práticas de suplício corporal e disciplinamento por meio da prisão, que emergiu não como uma solução mais humana, mas como uma nova tecnologia de poder. O encarceramento, longe de corrigir comportamentos, tornou-se ferramenta para perpetuar a delinquência e marginalizar determinados grupos sociais. Foucault nos permitiu perceber que o sistema penal nunca buscou eliminar o crime, mas organizar formas de controle social que beneficiam as necessidades econômicas e políticas do capitalismo e, por extensão, de um grupo social específico.

Entre os conceitos centrais articulados neste debate está o Panóptico, modelo arquitetônico da prisão idealizada por Jeremy Bentham, o grande símbolo do exercício do poder disciplinar. A vigilância constante ali observada, não apenas visava o controle dos comportamentos, mas levava os indivíduos a internalizar a disciplina, perpetuando uma normalização desejável e, a partir dela, operava a docilização dos corpos. Uma dinâmica que não se limita à prisão, mas se expande para outras instituições sociais como escolas, fábricas, hospitais e a própria caserna, que reproduzem os mecanismos de controle e exclusão sociais.

A percepção foucaultiana encontrou eco também na militarização das escolas públicas brasileiras. Trata-se de um movimento que reflete um processo de disciplinamento que tem permitido que o ambiente escolar opere a partir da lógica penal do sistema penal. Uniformes padronizados aos moldes das forças armadas, hierarquia rígida e sanções punitivas inauguram uma gestão baseada no controle e na repressão nas escolas públicas do país.

Militarização da escola e as populações periféricas

As escolas militarizadas, predominantemente localizadas em áreas periféricas e, portanto, vulneráveis, atendem um público majoritariamente composto por crianças e jovens oriundos de classes populares, em sua maioria não brancos. Esses indivíduos, vistos como “potenciais transgressores”, são submetidos a um sistema de vigilância que reforça o racismo estrutural e aprofunda a exclusão social.

Nessa realidade, o ambiente escolar passou a ser uma extensão do sistema penal – mais um lócus de administração da justiça penal – organizado a partir de um hiperpunitivismo disfarçado por falsos argumentos de disciplina e ordem.

A militarização das escolas reflete, ainda, a influência do populismo penal como estratégia política que explora o medo da insegurança para justificar tais práticas repressivas. Esse discurso é especialmente danoso porque reforça a criminalização desses grupos socialmente vulneráveis enquanto desvia o foco de soluções estruturais para problemas socioeducacionais.

Ao insistir no Projeto Nacional de Escolas Cívico-Militares as unidades da federação que insistem na militarização optam por deixar de investir em políticas de inclusão e qualidade de ensino para legitimar a pedagogização de práticas securitárias como intervenções repressivas que nada mais fazem além de ampliar a desigualdade.

Sob a ótica da problematização foucaultiana, há um destaque em relação a como o poder estatal tem gerido essa massa de indivíduos que considera indesejáveis por meio de mecanismos disciplinares que reforçam a marginalização de certas condutas. No caso das escolas militarizadas, isso se manifesta pela criminalização de uma periferia e racializada.

Racismo de Estado

O racismo de Estado, conforme descrito por Foucault, por ser normativo, tem autorizado práticas de segregação ao hierarquizar modos de existência, formas de vida; perpetuando um ciclo de violência institucionalizado agora não mais apenas pelas prisões, mas por esses modelos escolares que replicam o aquartelamento.

Esse racismo se manifesta nas escolas cívico-militares por meio da imposição de normas que reprimem a diversidade e reforçam estigmas.

Os sujeitos escolares como corpos periféricos são estigmatizados e tratados como ameaças à ordem social, justificando a presença de forças de segurança no ambiente escolar – o que mina não apenas um potencial criativo e transformador associado à educação, mas seu caráter emancipatório.

O filósofo ainda nos convida a questionar as razões pelas quais punimos e disciplinamos. No contexto das escolas militarizadas, essa reflexão se torna ainda mais urgente. Essas instituições não apenas replicam a lógica punitiva do sistema penal, mas também contribuem para a construção de uma sociedade que prioriza o controle e a segregação em detrimento da a inclusão. Assim, a escola – como as prisões – passa antes a administrar e a organizar as formas de desvios, de indisciplina, do que age para mitigá-las de fato. E tudo isso em nome de um discurso populista que bebe no populismo penal ao justificar diferentes tipos de intervenções dos militares por razões de segurança e de ordem.

Denunciar a militarização das escolas é também uma forma de expor as falhas de um modelo educacional que prioriza a repressão em detrimento da formação cidadã. A presença de militares em escolas não resolve problemas estruturais, como a exclusão social e a precariedade do ensino, tão somente reforça uma agenda de disciplinamento, constrangimento e conformidade das condutas.

Superação do pensamento ingênuo

Para superar essas questões, é preciso superar o pensamento ingênuo de que a educação e a escola precisam ser reformadas. Antes, urge uma necessária desconstrução dos discursos securitários que nada mais fazem do que naturalizar o punitivismo, viabilizando o investimento em soluções que promovam a formação de docentes e discentes, bem como meios para a inclusão e garantam a efetividade de práticas voltadas à promoção de justiça social em uma realidade dominada pela ordem do capital e pela racionalidade neoliberal, que historicamente demandaram de intervenções militares (sobretudo na América Latina) para sua implementação e perpetuação.

A reflexão foucaultiana nos desafia a imaginar um horizonte futuro como um não lugar. Isso implica a constante problematização das condições de possibilidade de todo e qualquer evento relacionado à educação. As palavras de ordem serão sempre desconstruir, desnaturalizar, destituir os enunciados de natureza securitária ou outros quaisquer que tornem fácil demais a compreensão das nada ingênuas e, tampouco, simples justificativas relacionadas à militarização das escolas públicas no país.

José Luís Ferraro, Doutor em Educação e Bolsista Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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