Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Arquivo
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil/Arquivo
Se você respondeu que sua saúde depende de coisas como um colesterol perfeito e uma pressão arterial suficientemente baixa, então é provável que já esteja contaminado pela ideologia médica moderna que tenta traduzir a saúde em números para depois otimizá-los, como se nós, humanos, fôssemos algum tipo de máquina estúpida. Porém, nossas vidas e nossa saúde são bem mais complexas que isso.
Há quem acredite em uma saúde vista como a “total ausência de doenças” ou compreendida como “níveis biométricos (colesterol, glicemia, etc.) otimizados”. Existe ainda aquela conhecida definição da OMS de que a saúde seria um “estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Mas essas visões de saúde deixam de fora quase toda a população, o que nos sugere que deveria haver mais espaço para bom senso no entendimento do que seja a saúde.
Uma perspectiva mais realista definiria a saúde como a capacidade de uma pessoa desempenhar seu papel na sociedade, alcançar seus propósitos de vida e realizar seus sonhos. Assim, a quantidade de saúde necessária para gozar de uma vida plena pode ser diferentemente conforme as atividades que realizamos e as expectativas que temos em relação a nossas vidas. Além disso, pode-se ser perfeitamente saudável mesmo tendo recebido alguns rótulos de doenças, desde que elas não nos impeçam de viver a vida que desejamos. E isso tudo depende de muitos fatores que não costumam ser abordados em consultas médicas.
Os chamados “determinantes sociais da saúde” podem ser pelo menos tão importantes quanto os números que constam nas páginas cada vez mais numerosas de seus exames laboratoriais. Coisas como grau de escolaridade, nível de renda ou local de moradia podem determinar direta ou indiretamente muitos aspectos da saúde e da longevidade das pessoas.
É por isso que investir durante a juventude em estudos formais que promoverão um maior nível de renda mais tarde pode ser tão importante para a saúde como praticar alguma atividade física ou manter um colesterol perfeito. Da mesma forma, morar em um ambiente adequado, com ar puro e áreas verdes seguras onde se possa praticar esportes ou simplesmente relaxar nas horas vagas pode ser um grande investimento em termos de saúde.
Um conceito mais recente descreve os chamados “determinantes comerciais da saúde”, aqueles fatores determinados pelas práticas comerciais de agentes poderosos na sociedade que podem ter impactos – positivos ou negativos – sobre a saúde das pessoas. A essa altura, já deve estar bastante claro para todos que a indústria do tabaco, do álcool e de alimentos ultraprocessados têm prejudicado muito a saúde da população. Da mesma forma, toda a poluição causada pela queima de combustíveis fósseis e pela produção e descarte de resíduos plásticos no ambiente são claramente prejudiciais à saúde da população e do próprio planeta.
Na mesma linha de raciocínio, o poder exercido pelas grandes empresas de tecnologia e as distorções geradas pelas redes sociais e seus nefastos algoritmos podem ser muito nocivos à saúde das pessoas, principalmente para os aspectos mentais da saúde. O grande problema é que tais empresas detêm um poder econômico imenso, suficientemente grande a ponto de distorcer a nossa percepção e corromper aquelas instâncias da sociedade (governos, agências reguladoras, mídia, etc.) que poderiam intervir em defesa da nossa saúde.
Se poderia ainda citar aqueles fatores individuais que têm grande impacto sobre nossa saúde individual e que poderiam ser chamados de “determinantes existenciais da saúde”. Trata-se daquelas escolhas pessoais que fazemos e que podem nos deixar felizes ou miseráveis pelo resto de nossas vidas. Exemplos disso são coisas importantes como trabalhar em uma atividade que nos traga satisfação pessoal, traçar objetivos de vida que sejam compatíveis com nossas possibilidades e escolher bem as pessoas (cônjuges, amigos, etc.) que nos acompanharão ao longo dessa longa e sinuosa caminhada que é a vida humana.
É fundamental lembrarmos que nossa saúde vai muito além dos níveis de substâncias variadas que são medidas em nossos exames de sangue. O que entendemos por saúde é na verdade o resultado de um amplo mosaico de fatores que incluem, além dos dados biométricos, nossa herança genética, nossa condição socioeconômica, as escolhas pessoais feitas ao longo da vida, o contexto em que vivemos em nível local e global, nosso grau de satisfação com a vida, entre tantos outros.
A boa notícia é que temos condições de agir em maior ou menor grau sobre todos esses fatores ao longo da vida, desde que sejamos capazes de perceber a sua importância e de fazer as escolhas certas. A visão mecanicista da medicina atual aponta todas as suas luzes para dados biométricos e acaba tirando o foco daqueles fatores que parecem alheios à medicina, mas que podem ser imensamente importantes para nos sentirmos saudáveis. É fundamental percebermos é que os médicos – quando adquirem uma visão mais ampla do que seja a saúde humana – podem ser grandes parceiros das pessoas nessa busca por saúde.
Assim, não deveríamos nos espantar se um médico sugerir a uma pessoa deprimida que mude de emprego, abandone as redes sociais ou termine um relacionamento tóxico em vez de simplesmente receitar um medicamento “antidepressivo”. Isso porque não há muita lógica em usar um remédio qualquer e persistir em hábitos de vida nefastos que tendem a perpetuar a depressão. E o mesmo raciocínio vale para tantas outras condições comuns hoje em dia como obesidade, doenças cardiovasculares, ansiedade ou hipertensão.
Todos esses determinantes sociais, comerciais ou existenciais de nossa saúde podem ser pelo menos tão importantes como os dados biométricos e, assim, deveriam ser analisados em conjunto com eles na hora de definir qualquer plano terapêutico. Se nossa saúde está diretamente relacionada com a vida que levamos, nada mais natural que realizarmos algumas mudanças em nossas vidas a fim de recuperar a saúde perdida. Muitas vezes, tudo o que precisamos é de um pouco mais de reflexão e de uma mudança de rota.
André Islabão é médico, integrante do movimento Slow Medicine Brasil e autor dos livros Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bem, O risco de cair é voar e Entre a estatística e a medicina da alma – Ensaios não controlados do Dr. Pirro.