O fim da utopia entre tecnologia e educação básica
Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília
Foto: Joel Rodrigues/Agência Brasília
A impressionante aceleração das mudanças tecnológicas nas últimas décadas produziu a necessidade de que as adequações quanto ao uso de ferramentas digitais na educação se dessem em um espaço de tempo cada vez mais reduzido.
A locomotiva a vapor, impressionante feito da engenharia da Revolução Industrial, reinou durante largo tempo como a materialização do espírito criativo humano. Dessa forma, era possível nascer e transformar-se em um adulto sem que os avanços tecnológicos que estavam a surgir no século 19 nos exigissem drásticas mudanças na nossa relação com o mundo ou mesmo nos forçassem a nichos cada vez mais específicos de especialização.
O mesmo não se pode dizer da nossa contemporaneidade: as mudanças na nossa época digital são tão aceleradas, que é pouco provável, para não dizer impossível, que qualquer tecnologia, em um curto espaço de tempo, não se torne pelo menos em parte obsoleta ou desatualizada.
Foi o Futurismo de Marinetti que, no início do século XX, chamou para si a responsabilidade de transformar o otimismo pelos avanços tecnológicos em estética. Dizia o Manifesto Futurista: “A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco”.
Havia, dessa forma, não apenas uma devoção à velocidade crescente de um mundo cada vez mais urbano, mas sobretudo a vontade de transformar a força inovadora em linguagem. O Futurismo era por natureza hiberbólico, realçando e sobrecarregando as intenções comunicativas: “Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade.
Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia”. Havia, ao que parecia, um enorme futuro pela frente. Veloz e agressivo, como os automóveis.
A invenção do microchip no final dos anos 50 foi um marco na indústria tecnológica. Se antes computadores precisavam de um enorme espaço físico para funcionar, agora tudo estava diminuto. Em 1977, Steve Wozniak e Steve Jobs criariam a Apple, que foi e ainda é fundamental na difusão da infotecnologia.
Nessa seara, também entram a Microsoft, a Oracle e um gigantesco número de outras grandes empresas cujo objetivo era a aproximação do usuário final a ferramentas digitais, por mais complexas e microscópicas que essas ferramentas pudessem ser para um leigo. A internet iria ainda mais longe ao promover a comunicabilidade sem fios, especialmente com tecnologias como o Wireless e o Bluetooth.
Assim, quando, por exemplo, usamos um iPhone não conseguimos mais visualizar o carvão sendo colocado na locomotiva, ou seja, usamos todos os dias tecnologias sobre as quais nada sabemos e nada enxergamos. A nossa era digital é, sobretudo, um tempo de desterritorialização tecnológica – e talvez seja por isso que as realidades virtuais/aumentadas venham se popularizando cada vez mais. O outro precisa ser virtual. Mais do que a AIDS nos anos 80, a tecnologia é hoje a grande responsável pela descorporificação de nossas relações com o outro e com o mundo ao nosso redor.
A relação entre o Capital e essa é indústria é, obviamente, extremamente intrínseca, uma vez que a ideia de renovação (ou “avanço”) dos bens de consumo é um dos motores fundamentais de manutenção da sociedade capitalista. Tal princípio foi desenvolvido pelo economista britânico Willians Jevons (1835-1882).
Adam Smith e Karl Marx acreditavam que o valor vinha estritamente dos custos de produção, especialmente da mão de obra; já Willians desenvolveu a ideia da “utilidade marginal”: quanto mais se consome algo, menor é o prazer que nos é ofertado. Não conseguiríamos manter para sempre a sensação, de, por exemplo, comer um magnífico filé grelhado pela primeira vez se assim o fizéssemos todos os dias.
Seria necessário um filé maior, com melhor molho, com outros acompanhamentos. O mesmo vale para a tecnologia: 200Mb de velocidade já não nos bastam; são necessários gigas e gigas de conexões. Ou um iPhone 16. Já esperando pelo 17, pelo 18, pelo 19 etc.
Dessa maneira, não foi difícil que nossa sociedade de consumo fosse levada a uma utopia do virtual. Nesse mundo de telas, a chamada indústria 4.0 nos foi ofertada e imposta com o otimismo típico dos ingênuos. A Educação, nesse sentido, foi preza fácil para os tecnocratas. Há 10 anos, mais ou menos, havia um indiscutível otimismo quanto ao uso dessas ferramentas em ambientes pedagógicos. Inúmeras instituições gastaram muito dinheiro em tablets e lousas virtuais com o discurso de que essas ferramentas seriam úteis ao aprendizado.
Na prática, no entanto, o que foi possível de ser observado foi alunos (ainda mais) desatentos, diminuição da produtividade em sala de aula e, portanto, queda na interatividade entre os sujeitos – algo tão essencial ao aprendizado. Esse otimismo chegou a virar uma espécie de fetichização. Lembro de uma vez em que me foi apresentada por uma supervisora a ideia de usar robôs para construírem poemas.
Cada um deles teria uma palavra grudada sobre si, e, sabe-se lá como, os alunos os guiariam até formarem o texto. Tratava-se de algo puramente fático, em que o canal valia mais do que a mensagem. A verdade é que boa parte dos gestores de educação se precipitaram de forma ingênua e superficial rumo aos discursos tecnológicos que tinham, claro, a intenção última de movimentar o nosso modelo de sociedade baseado no acúmulo de capital e exercer, por meio dos algoritmos, uma intensa vigilância em nossos mais prosaicos hábitos e gostos.
No entanto, principalmente depois da pandemia, houve o surgimento de uma consciência mais apurada e madura em relação ao uso de ferramentas virtuais, e já é bem comum, inclusive, que escolas de educação básica propagandeiem como seu diferencial justamente meios mais “analógicos” de aprendizado, deixando de lado o deslumbramento e o fetichismo ingênuo quanto ao mundo digital.
É nesse contexto de construção de maturidade que as discussões sobre uso de celular em escolas têm surgido. Parece não haver mais muitas dúvidas de que é quase impossível incorporar total e irrestritamente o uso de tecnologias à sala de aula sem que haja prejuízos cognitivos e de que, portanto, aquilo que era utopia se transformou em uma imensa máquina de moer atenção.
Há, nesse viés, dois aspectos fundamentais a serem levantados. O primeiro deles diz respeito, pura e simplesmente, ao preparo dos gestores em avaliar possibilidades e riscos de inovação para além daquilo que é ofertado pela iniciativa privada. Me parece que houve uma superficialidade (para não dizer ausência) de posicionamento crítico quanto à implementação de aparatos tecnológicos em escolas de educação básica.
Muitas vezes o otimismo só nasce no desconhecimento, e não penso que seja um exagero afirmar que boa parte dos envolvidos no gerenciamento escolar não detinha capital intelectual para que a criticidade prosperasse frente ao deslumbramento por inovação, afinal de contas não é muito aceitável que se façam investimentos de dezenas de milhares de reais sem que haja o mínimo de prognóstico sobre que tipo de retorno eles trarão.
Há uns 10 anos uma grande rede de escolas de Porto Alegre investiu uma altíssima quantia na aquisição e instalação de lousas digitais que se mostraram, já a curto prazo, pouco úteis no dia a dia. Dessa forma, seria de se pensar se os currículos de cursos de pedagogia estão de fato contemplando as nuances e desafios do mundo contemporâneo ou se em larga medida reproduzem apenas um academicismo deslocado da práxis.
O segundo aspecto é a ausência de políticas públicas educacionais que concatenem com expertise a adoção e presença das tecnologias nas escolas de um país tão vasto e desigual como o Brasil. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) apresenta pouca coerência no que se refere às habilidades que utilizam ferramenta digital. Nessa (ausência de) configuração, há uma diluição das diretrizes, fazendo com que as escolas ou redes, públicas ou privadas, interpretem a Base com larga margem de pragmatismo quanto a suas realidades.
Há de se ponderar, evidentemente, que o caminho não é propriamente o abandono das tecnologias em sala de aula, mas sim a construção de uma visão mais crítica e autônoma em relação aos seus usos. As ferramentas digitais podem, em diversos contextos, serem aliadas na educação, no entanto seu uso indiscriminado traz, sim, consequências negativas. Parece que não há hoje caminhos que não passem pela ideia de desintoxicação digital.
A tecnologia, especialmente os smartphones, gestou e pariu uma geração de jovens ansiosos e, em larga medida, presa à noção fragmentária das realidades virtuais. Certamente há muitas bombas-relógios em uma massa de jovens que pouco experienciam a comunicação face a face e que passam a maior parte de seu tempo expostos à dopamina liberada no arrastar de dedos nas redes sociais.
Nesse sentido, estamos vivendo uma sensação paradoxal, já que, apesar da ditadura da inovação, nos vemos sem futuro, presos a um eterno presente em que parece impossível termos qualquer tipo de concretude quanto ao futuro – e não seria justamente isso, o futuro, o grande objetivo da educação básica?
Assim, a incorporação total e irrestrita de ferramentas tecnológicas na educação básica leva invariavelmente ao esvaziamento da própria educação. O nosso grande desafio hoje como sociedade é reestabelecer a corporificação das nossas relações, seja por meio de um abraço, da leitura de um livro, de uma conversa olhando nos olhos, do brincar na rua, da contemplação na janela, enfim, precisamos retomar a autonomia dos sentidos com o mundo e com as pessoas, sem o filtro das telas, corporificando nossa relação com o real.
Quem sabe assim, em algum dia, possamos voltar a ter convicção de que o aprendizado só se dá quando, com muita atenção, conseguimos desenvolver a capacidade contemplativa do mundo real.
Cristiano Fretta é escritor e professor de Português e Literatura.