Reprodução: Os primeiros trabalhos de Adão e Eva , 1652 por Alonso Cano (1601-1667, Espanha)
Reprodução: Os primeiros trabalhos de Adão e Eva , 1652 por Alonso Cano (1601-1667, Espanha)
Um dos eufemismos mais bem sucedidos que tentam recobrir com uma pátina simpática as violentas relações de exploração no campo do trabalho é o do colaborador, aquele que trabalha (labora) junto, co-labora com as metas da empresa, sentindo-se parte do seu corpo e engrenagens. À força da repetição, muitas vezes nos vemos tentados a nos deixar representar por essa palavra ou então a chamar aquele pobre empregado, mal pago, que enfrenta horas de trânsito para bater ponto em uma empresa que lhe nega benefícios, de colaborador.
Não é à toa que companhias, muitas das quais compram cidades e prefeitos, apoiem ativamente o desmonte da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) dos trabalhadores e, conforme negam seus direitos e proteção social, insistam tanto na “colaboração” de seus empregados.
Como bem aponta a tradição marxista, a luta de classes também é uma luta que se inscreve no campo da linguagem. A palavra é um signo, sinal de ausência, de algo que não estava presente e que, evocado, passa a existir (qual é o grito da palavra grito? O que grita nela?).
É nesse sentido que parte importante da luta por reconhecimento social dos nossos desejos e demandas passa por nomear aquilo a que chamamos de realidade; a pensar nas razões por que pensamos o que pensamos; apontar os interesses e as tensões que constroem o senso-comum; mas também a criar e fantasiar realidades possíveis para podermos materializá-las, compartilhar o sonho e lutar por elas. No campo do trabalho, isso não é diferente.
Na coluna que mantém no site da editora Quodlibet, publicada na véspera de Natal de 2024, o filósofo italiano Giorgio Agamben explora a raiz latina da palavra trabalho (labor, oris, m.) e ilumina o problema conceitual presente na Constituição Italiana que, após o fascismo e com o fim da monarquia, em sua boa vontade determinou o trabalho como valor fundante.
Agamben aponta alguns problemas estruturais desse movimento. Em latim, por exemplo, a palavra labor consistia em uma pena angustiante, a um sofrimento imposto a alguém. Sobre o pórtico de entrada de Auschwitz estava escrito “Arbeit mach frei”, que o trabalho liberta, produz liberdade.
No Gênesis, o trabalho se configura como a punição de Deus ao pecado original (de Adão e Eva). No campo da física, o trabalho é definido através da força que se aplica para deslocar um corpo. A esse trabalho se aplica o segundo princípio da termodinâmica, no qual a energia tende fatalmente a degradar-se e a entropia, que exprime a desordem de um sistema energético, a aumentar.
Em outras palavras, e seguindo as provocações de Agamben, quanto mais produzimos trabalho, mais crescerão no universo a desordem e a entropia.
Para além da punição divina, faz sentido pensarmos as formas como o neoliberalismo se apropriou do campo do trabalho com a mesma sanha punitiva de Deus. Se até meados do século XX, o sujeito pagava por meio da neurose a sujeição de suas pulsões aos papéis sociais definidos (marido, esposa, trabalhador, pai, mãe etc.), hoje a couraça da neurose se desmonta em meio a tantas aflições geradas pela “colaboração” no campo do trabalho, seja nas diferentes formas de depressão, ansiedade ou síndrome do Burnout.
Em A ideologia alemã, Marx anunciava que na sociedade do amanhã seria possível, em vez de trabalhar, “fazer hoje isto, amanhã aquilo, de manhã caçar, de meio-dia pescar, de tarde criar gado, depois do almoço criticar, assim como se manifesta a vontade”. (Traduzido do italiano: fare oggi questa cosa, domani quell’altra, la mattina andare a caccia, il pomeriggio pescare, la sera allevare il bestiame, dopo pranzo criticare, così come ne viene voglia)
Na sociedade que poria fim à mais-valia, à exploração do trabalhador por parte de quem detém o controle dos meios de produção (cada vez mais difusos e transnacionais nos dias correntes), o trabalhador se apropriaria do seu tempo, criaria sua liberdade a partir de um tempo vital, no qual potencializaria seus desejos. Seria uma sociedade mais do ócio e do trabalho criativos do que das penas compulsórias do mercado, onde o trabalhador, desprovido de tudo exceto de sua força produtiva, troca seu tempo vital pelos salários de fome.
É neste cenário que Bifo Berardi, outro filósofo italiano, fala da estratégia da deserção ou abdicação, da recusa em colaborar com as formas de sujeição de uma sociedade neoliberal. Em toda parte, jovens têm abdicado de entrar em um mercado de trabalho ao qual entregarão à alma e recolherão apenas ossos; diversos homens na Europa se refugiam em monastérios fugindo ao contato com o mundo contemporâneo; mulheres abdicam de procriar, porque não vem sentido em darem à luz sujeitos que encontrarão um mundo em ruínas, com recursos naturais devastados e jornadas laborativas extenuantes. Neste contexto de fim de mundo (ideologicamente criado por quem tem interesse em manter essa imagem que só gera terror e ranger de dentes), a deserção é uma estratégia viável e enuncia-la é uma forma de que ela crie corpo e passe a existir.
A esquerda brasileira se construiu lutando pela dignidade do trabalho. Porém, os tempos mudam e até mesmo o partido hegemônico do campo se surpreendeu com a aparição e o sucesso da campanha pelo fim da escala 6X1, que surgiu de fora das organizações sindicais e foi proposta por uma jovem deputada trans. De tudo que foi tentado em 2024, em meio a uma conjuntura em que a esquerda mais reage às pautas da extrema-direita, essa foi a única campanha que obrigou o campo oposto a se pronunciar.
Talvez seja a hora de a esquerda voltar a sonhar e a lutar pela dignidade de vidas em que os trabalhadores não apenas colaborem para a repartição dos lucros alheios; mas que se apropriem do seu tempo e do seu desejo, assim como se manifesta a vontade.
Arthur Beltrão Telló é professor da PUCRS, do Colégio Gabarito e escritor.