OPINIÃO

Os saques em Los Angeles e a solidariedade em Gaza

Por Moisés Mendes / Publicado em 13 de janeiro de 2025

Os saques em Los Angeles e a solidariedade em Gaza

Fotos: Foto: Jeremy Miles-CC BY-SA 2.0/ MSF

Fotos: Foto: Jeremy Miles-CC BY-SA 2.0/ MSF

Todas as comparações entre a destruição de Los Angeles pelo fogo e a devastação de Gaza pelas bombas e pelos soldados de Netanyahu passam por uma constatação elementar do que as situações têm em comum. Seus moradores estão perdendo suas casas. Parece ser o mais óbvio e visível hoje.

Mas que casas e que moradores? E em quais circunstâncias? São situações que parecem nem merecer explicações, ou estaremos subestimando até a capacidade de discernimento de negacionistas, idiotas e belicistas. Mas merecem.

Até porque já morreram mais de 40 mil pessoas em Gaza. Assassinadas pelos ataques israelenses. E morreram 40 em decorrência dos incêndios na Califórnia. Parece não haver comparação possível. Porque não há como comparar tragédias apenas com números.

Sabe-se que é quase impossível reconstruir Gaza. Que as mansões da Califórnia serão reerguidas por seguros milionários. E que a maioria dos que perderam casas nas regiões das mansões têm outras mansões para morar.

Os que perderam casarões de ricos na Califórnia se chamam Mel Gibson, Jeff Bridges, Spencer Pratt, Jamie Lee Curtis, Heidi Montag, Milo Ventimiglia, James Woods, Billy Crystal, Mandy Moore, Adam Brody, Leighton Meester.

Sim, há vítimas anônimas em Los Angeles, que são, claro, a maioria. Elas se queixam de que os bombeiros socorrem apenas as áreas dos ricos. Mas ninguém é tão anônimo quanto os moradores de Gaza. Ninguém sabe o nome de um morador de Gaza.

Los Angeles, no centro dos incêndios, tem 3,8 milhões de moradores. O jornal USA Today informa que a cidade tem pelo menos 200 mil habitantes que podem ser considerados milionários. E moram ali 43 bilionários, de acordo com um relatório da Henley & Partners.

A cidade também tem uma das maiores populações de moradores de rua dos Estados Unidos. São 75 mil pessoas e muitas moravam no entorno da famosa e bilionária região da Pacific Coast Highway de Malibu, a maior estrada costeira da Califórnia, cercada por mansões de celebridades.

As TVs, inclusive a Globo, mandaram seus jornalistas para Los Angeles, e o que os repórteres passaram a mostrar? As casas dos milionários, ou o que restou das moradias. Mas o USA Today mostrou gente pobre fugindo de onde moravam.

Em Gaza, não há nem para onde fugir. Mas há um outro detalhe que diferencia os dois cenários, para muito além das questões materiais e dos números.

Há saques em Los Angeles. E não há saques na Gaza devastada por Israel. O que os jornais às vezes chamam de saques em Gaza são as atitudes desesperadas de pais, mães e filhos que tentam interceptar caminhões com alimentos que entram no território palestino destruído.

Não são saques. São gestos de desespero. Ninguém saqueia casas em Gaza. Não há uma reportagem, uma só, sobre saques como um dos problemas de Gaza.

As pessoas se ajudam em Gaza. Porque em Gaza não há, como em Los Angeles, distâncias gigantescas entre quem tem tudo e quem não tem nada. Entre os 43 bilionários que moram na costa, muitos dos quais agora sem casa, e os 75 mil moradores de rua que nunca tiveram onde morar.

Então, quando forem fazer comparações, por mais óbvias que sejam, atentem para esse detalhe. Por mais cansativo que seja ouvir lições morais, o detalhe passa exatamente por isso: pela questão moral. Não há saques em Gaza.

Ninguém tenta roubar nada de ninguém em Gaza, mesmo em meio ao pavor de ter perdido tudo e não ter o que comer. Porque a prevalência ali é a da solidariedade entre quem sempre teve pouco. Não a filantropia ocasional da doação de sapatos e roupas velhas. A solidariedade é cotidiana, permanente.

Havia em Gaza o que o Ocidente chama genericamente de refugiados em moradias precárias e improvisadas, e que são na grande maioria os próprios moradores originais daquele lugar e do seu entorno.

Havia gente na pobreza e na miséria, sitiada pelo neonazismo e pela indiferença mundial. Mas não existiam, antes dos ataques de Israel, moradores de rua entre os 2,1 milhões de moradores de Gaza. Hoje, eles existem. Mas não há saques em Gaza.

(Este texto é dedicado ao jornalista palestino Wael Al-Dahdouh, que chefiou a TV Al Jazeera em Gaza. No dia 25 de outubro de 2023, ele fazia uma transmissão ao vivo quando recebeu um telefonema informando que sua esposa, dois dos seus filhos, de 7 e 15 anos, e o neto, com poucos meses de vida, haviam sido assassinados por ataques dos israelenses. Mais adiante, no dia 7 de janeiro de 2024, seu terceiro filho, Wael Al-Dahdouh, também jornalista. O exército genocida de Netanyahu já matou mais de 140 jornalistas em Gaza, onde não existem saques.)

Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.

 

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