Por uma educação menor
Ilustração: Arte EC
Ilustração: Arte EC
A educação, tal qual a conhecemos, foi estruturada ao longo da história para atender a padrões e expectativas impostas por diferentes sistemas de poder que podem ser personificados, por exemplo, a partir da figura do Estado e das demandas estatais. No entanto, o ato de ensinar e aprender não pode ser reduzido a um simples acúmulo de informações ou a uma preparação técnica para o mercado. A educação, para além do ensino, é aquela que se funda na dimensão da experiência, promovendo a reflexão, a crítica e a transformação.
Isso significa que, para tanto, o processo educativo deve ser calcado na valorização e na integração de diferentes discursos – e, portanto, práticas – e saberes que priorizem a formação de sujeitos pensantes em detrimento da transmissão de conteúdos que não são aprendidos e, tampouco, apreendidos. Trata-se de uma educação ancorada em abordagens capazes de romper com a lógica tradicional ao sugerir processos de ensino e de aprendizagem que recusam em certa medida a homogeneização ao celebrarem a elementos como a pluralidade e a singularidade.
Nessa direção, só uma educação menor, inspirada na filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari, seria capaz de produzir um deslocamento das estruturas dominantes. Como na literatura menor atribuída pelos autores à obra de Franz Kafka – reconhecida pela capacidade de desestabilizar a linguagem oficial, suas estruturas, e criar novas formas de expressão – a educação menor desafia os modelos estabelecidos, abrindo espaços para outras maneiras de ensinar, aprender e, inclusive, de ser. Não se trata de uma educação voltada à padronização, à manutenção do status quo ou formas de racionalidades dominantes; tampouco para a produção de identidades fixas, mas à valorização da construção de subjetividades diversas e de um potencial criativo, de reinvenção constante nos espaços educativos sejam eles quais forem.
Essa perspectiva se distancia de uma educação meramente instrumentalizada, voltada à mercantilização do conhecimento, que prioriza certificações e habilidades técnicas em detrimento de uma formação crítica, de uma ascese intelecto-cognitiva. Em um mundo regido pela lógica neoliberal, onde a educação é tratada como mercadoria, a aprendizagem se resume a adquirir competências vendáveis e a formação não passa de mais um ativo de mercado, a necessidade de uma educação menor se torna ainda mais urgente. Logo, é preciso resgatar na educação seu potencial de subjetivação como lócus de resistência, subversão, contraconduta e de abertura à diferença.
Nesse sentido, uma educação menor se apresenta como uma prática política ao reconhecer que todas as formas de ensino e de aprendizagem são atravessadas por relações de poder – e que investir naquilo ao que costumamos nos referir como sendo uma “educação tradicional” significa fomentar a manutenção e a reprodução de estruturas historicamente reconhecidas de poder, seu domínio e suas organizações hierárquicas quase sempre inquestionáveis.
Na contramão disso, uma educação menor é capaz de propor uma desterritorialização dessa realidade que está dada e vem sendo tomada como verdade, ao permitir a criação de brechas dentro do sistema para que novas possibilidades possam emergir nos interstícios do poder, de um currículo, de um projeto político-pedagógico ou de um documento maior de caráter normativo, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo.No entanto, não se trata de destruir os sistemas de ensino ou a escola como instituição, mas de transformá-los, subvertendo suas práticas a partir da diferença.
O fato é que esse movimento implica ressignificar o papel de todos os sujeitos envolvidos no processo educacional, seus atores, para além das categorias professores e alunos. Em vez de uma relação vertical entre estudantes e docentes, ou docentes e equipes pedagógicas, uma educação menor é capaz de propor um modelo colaborativo, no qual os agentes da comunidade escolar aprendem e ensinam mutuamente. O conhecimento, nesse contexto, deixa de ser tão somente uma mercadoria, para assumir-se como algo vivo, coletivo, aberto em seu caráter processual em espaços propícios à experimentação e invenção, onde diferentes saberes se (des)encontram e se transformam.
A educação menor é o que desafia a ideia de currículo hermético, estruturado e prescritivo. Ela defende a abertura para diferentes formas de conhecimento, incluindo aquelas que historicamente foram marginalizadas ou desconsideradas. Logo, ela desafia também a normatividade curricular. Trata-se de um convite à escuta ativa e atenta, à percepção dos ritmos individuais e à valorização das trajetórias diversas seja dos estudantes, seja dos professores permitindo que ambos complexifiquem as formas de se agenciarem com vistas às possíveis novas/outras formas de ensinar e aprender.
O desafio é grande, pois a educação dita tradicional se encontra profundamente enraizada em lógicas burocráticas de controle que também são hierárquicas. No entanto, é justamente nas fissuras desse sistema que a educação menor se torna fértil e pode emergir. Ao encontrar e ocupar brechas dentro das estruturas dominantes, ela permite que outras pedagogias – da diferença – floresçam e se consolidem.
No entanto, sempre é bom sublinhar que uma educação menor não oferece respostas prontas, pois não se trata de seguir à risca modelos fixos. Pelo contrário, ela propõe uma cartografia do conhecimento que, para além de um programa, se baseia nos interesses e nas necessidades da coletividade em questão. É nesse sentido que ela é considerada uma prática de abertura e, portanto, de liberdade; um convite permanente à (trans)criação do conhecimento.
Diante de um mundo que busca padronizar corpos, pensamentos e subjetividades, uma educação menor se converte em ferramenta cujos usos colocam o conhecimento a serviço de diferentes formas de ser/estar no mundo, logo, de outras formas de resistência, modos de vida, formas de existência, de (re)invenção de si.
Uma educação menor é um chamado à diferença. E, em tempos de uniformização, e de tentativas de captura ou cooptação em relação ao estabelecimento de uma educação diretriz, a (re)afirmação de sua menoridade ainda é o ato mais grandioso e revolucionário dos profissionais do ensino.
José Luís Ferraro é Doutor em Educação, professor universitário e Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.