A injustiça de farda e a justiça que tarda
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Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog
Herzog entrevista Jarbas Passarinho, ministro da educação do governo Médici, na redação da Revista Visão, em Brasília, em 1974. No ano seguinte, o jornalista seria preso e assassinado pela ditadura
Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog
Neste Brasil, paraíso secular da impunidade, é sempre alentador um gesto de reparação pela violência do Estado. Mesmo que ela venha tardia, esmagada pelo tempo, que acaba moldando uma justiça deformada e, por definição, iníqua e perversa.
No rol dos países do Cone Sul que se nivelaram por baixo, na segunda metade do século 20, como valhacouto para generais golpistas e sanguinários, o Brasil acabou sendo um dos piores exemplos de arbítrio.
Na década de 1980, quando passou o vagalhão das ditaduras que fizeram ordem unida e forçada sobre os povos do sul do continente, o Brasil cínico de sempre foi o único que não fez a devida limpeza de seu entulho autoritário.
Todos os nossos vizinhos – Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Paraguai – fizeram o encontro da lei da democracia com os militares transgressores das ditadura. Oficiais terroristas da repressão e generais-presidentes foram despojados de sua arrogância e saíram dos tribunais direto para os calabouços a que, em seus regimes de força, destinavam a população civil e desarmada.
O Brasil, ao contrário, deixou seus criminosos fardados impunes, ilesos e imaculados, após 21 anos de uma ditadura implacável que caçou, perseguiu, prendeu, torturou, matou e desapareceu para sempre com seus dissidentes, homens e mulheres conscientes que cometiam o pecado de reclamar pela volta da democracia e bradar por liberdade.
O jornalista Vladimir Herzog era um deles. Foi preso, torturado e morto em poucas horas nos porões do Doi-Codi de São Paulo, em outubro de 1975. E o regime, falso e cínico como sempre, inventou um IPM (inquérito policial-militar) no âmbito do II Exército paulista que escancarava no objeto da investigação a mentira em que sustentava a ditadura: um IPM para apurar as circunstâncias do “suicídio” de Herzog.
Antes de começar o inquérito, os militares mancomunados pela farsa já impunham a mentira de que o jornalista morto era apenas um “suicida”, detalhe que inocentava previamente seus assassinos.
Herzog resumia a matemática sangrenta da ditadura: era o 22º jornalista morto ou desaparecido pela repressão do regime. Só nos dois anos iniciais do Governo Geisel (1974-1979), a ditadura tinha colecionado cerca de 60 desaparecimentos políticos.
Na escalada de violência de outubro de 1975, Herzog era o 12º jornalista preso no espaço de uma semana só na cidade de São Paulo, varrida por uma onda de detenções que atingiu mais de 200 pessoas – incluindo líderes sindicais, médicos, estudantes, professores universitários, advogados e membros da oposição legal, reunidos no MDB, o partido da única oposição consentida no regime dos generais.
Herzog foi morto sob torturas em outubro de 1975. Só agora, 50 anos depois, sua viúva, Clarice, recebe o benefício de uma pensão vitalícia pela morte cometida pelo Estado brasileiro nas dependências do Exército. Só em 2013, por intervenção da Comissão Nacional da Verdade, Clarice recebeu o atestado de óbito que desmentia a farsa do “suicídio”, estabelecendo a verdadeira causa da morte – “asfixia mecânica por enforcamento, lesões e maus tratos”.
Apesar de Herzog e outras centenas de vítimas fatais, além de milhares de presos e torturados, o Brasil ostenta uma vergonhosa, humilhante ‘taxa zero’ de punição pelas violências praticadas em duas décadas. Nenhum militar, de qualquer posto ou hierarquia, e nenhum policial foi julgado, condenado e punido pelos crimes e mortes que cometeu a partir de 1964. Nem os três maiores patifes da tortura no país – o tenente-coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e os delegados do Dops Sérgio Paranhos Fleury e Pedro Seelig – passaram pelo dissabor de um único dia na cadeia.
Como eles e os assassinos de Herzog, passaram todos ilesos pelo tapete de sangue e truculência que ajudaram a construir nos anos da ditadura. Quando os generais-presidentes se foram, em 1985, os governantes civis que os sucederam no período democrático que ali começava não tiveram a coragem, o caráter e a decisão política de revisitar o passado de violência para evitar que ele voltasse no futuro.
Assim, José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva usaram suas luvas de pelica mais felpudas e suas pantufas mais macias no Palácio do Planalto para não pisar nos ovos dos generais da ditadura, que continuaram, mesmo na democracia, solidários e corporativos em relação aos companheiros de farda que cometeram atrocidades na ditadura.
O único ocupante que destoou da passividade contagiante dos presidentes civis pós-1985 foi a única presidente mulher: Dilma Roussef, por acaso uma ex-guerrilheira presa na ditadura e que chegou a ser torturada no mesmo Doi-Codi onde Herzog não sobreviveu.
Com coragem e visão política, Dilma instituiu em 2012 a Comissão Nacional da Verdade, a mais sólida e conclusiva tentativa oficial no país de investigação dos abusos e violências do regime militar. Dilma teve coragem de criar a CNV, mas não teve força para resistir ao corporativismo dos comandantes militares solidários com os assassinos da ditadura. Durante meses a fio, os oficiais-generais de todas as três Forças Armadas retardaram, reagiram, distorceram, recusaram e sabotaram os trabalhos da CNV, bloqueando arquivos e fechando as portas dos quarteis a qualquer investigação. Ficaram solidários com os criminosos, em vez de salvar a honra dos militares depurados pelo banho de democracia.
Apesar da sabotagem institucional dos generais, almirantes e brigadeiros, a CNV se tornou um triunfo da luz sobre a treva: o valioso relatório final da CNV – que alguns citam, poucos leram e o indecoroso capitão Jair Bolsonaro certamente nunca irá estudar ou sequer folhear, por deficiência, preguiça ou mera cumplicidade – se distribui por três densos volumes que somam 3.388 páginas, a mais completa, contundente, rigorosa autópsia do regime militar de 1964-1985. Tudo isso com acesso franqueado e universal, pela internet, neste link útil e necessário.
Os curiosos que abrirem esse arquivo indispensável da História brasileira vão encontrar, lá, os nomes dos 377 responsáveis pela morte de 434 pessoas, 210 delas ainda desaparecidas. Sempre focado na cadeia de comando, que aponta os comandantes que instruíram a violência institucional dos comandados, o relatório aponta corretamente, por ordem de hierarquia, os autores de graves violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura que tanto encanta o nostálgico capitão Jair Bolsonaro.
Lá estão todos os seus ídolos: os cinco generais-presidentes (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três comandantes da Junta Militar que governou o país por dois meses em 1969, além de seis ministros do Exército, sete da Marinha e cinco da Aeronáutica, três chefes do SNI e 24 chefes dos serviços de inteligência das três Forças Armadas – CIE, Cenimar e Cisa –, o braço executivo da repressão.
Na sequência, estão os nomes dos outros 324 agentes civis e militares que produziram as torturas e mortes do terrorismo de Estado brasileiro, incluído ali o maior herói de Bolsonaro, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), que organizou e comandou por quatro anos o Doi-Codi da rua Tutoia, o mais sangrento do país. Ali, segundo a pesquisa da CNV, passaram 2.541 presos (a torturada guerrilheira Dilma Rousseff, inclusive); 51 não saíram vivos (o “suicidado” jornalista Vladimir Herzog era um deles).
A tardia pensão agora concedida a Clarice Herzog é um mínimo gesto de reparação e elegância que o Brasil deve a ela. Quem quiser saber o que fizeram os comparsas e assassinos de Herzog, basta acessar o arquivo da Comissão da Verdade. O horror está todo lá.
Luiz Cláudio Cunha, jornalista, foi consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura (L&PM, 2008, 472 p.).
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