Para que serve a universidade?

Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
Apesar do cenário dominado pelas gigantes do ensino privado, o acesso à universidade pública vem crescendo cada vez mais devido às políticas públicas como o ProUni – na imagem, bolsistas a caminho do Japão para um intercâmbio com universitários de dez nacionalidades
Foto: Valter Campanato/ Agência Brasil
A universidade não é uma rede informacional, nem um supermercado intelectual, sentencia o ensaísta Mikhail Epstein em seu manifesto sobre as humanidades. Professor de teoria cultural e literária russa, ele defende um ensino universitário que seja transformador: “para educar humanos por humanos para uma humanidade melhor”. Considerando que a expansão do ensino superior no país segue a lógica dos grandes grupos econômicos de educação, precisamos nos questionar: para que e a quem serve o ensino superior no Brasil?
Segunda nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Art. 43 da LDB/1996) a educação superior tem por finalidade “estimular o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; (…) incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura”, objetivando, desse modo, “desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive”.
Porém, conforme o Censo do IBGE 2022 sobre a educação divulgado dia 26 de fevereiro e de acordo com o Censo da Educação Superior de 2023 (Inep/MEC) nosso ensino superior no Brasil cresce sob uma forte lógica de mercado, ofertado por empresas com fins lucrativos, é virtual (EaD), disfuncional, desordenada, elitista, concentrado em estados e cidades ricas, acessado predominante por brancos.
Após 15 anos sem informações atualizadas, aas informações do censo da educação permitem uma análise sobre a condição que a educação se encontra e precisa orientar o planejamento dos planos educacionais para a próxima década e a formulação de políticas públicas educacionais mais sólidas e referenciadas.
Segundo este Censo de 2022 é possível perceber uma expansão expressiva da oferta em todos os níveis e modalidades nas últimas duas décadas do presente século (2000-2022). Porém, é necessária uma análise mais ampla e profunda sobre a natureza e a qualidade dessa expansão, bem como os desafios gigantescos que ainda se apresentam ao Brasil em matéria de universalização da educação e da ciência com qualidade social.
De 2000 a 2022, na população do país com 25 anos ou mais de idade, a proporção dos que tinham nível superior completo cresceu 2,7 vezes: de 6,8% para 18,4%. Analisando os resultados, é possível perceber que o aumento da proporção de pessoas com nível superior ocorreu para todos os grupos de cor ou raça.
O percentual é 18,4% configura-se ainda como uma oferta elitista, pois menos de um quinto da população acessa a formação superior. Enquanto isto, a título de referência, a escolaridade nesta faixa etária é de 67% na Coreia do Sul, 58% no Canadá, 48% no Japão e 40% no Reino Unido. Na Amárica Latina estamos abaixo da Argentina, Colômbia e Chile. Em todos estes países, a escolaridade geral da população é ainda bem mais elevada.
IES e matrículas
O Censo da Educação de 2023 (Inep/MEC) registrou a existência de 2.580 Instituições de Educação Superior (IES) no país. Dessas, 87,8% (2.264) eram privadas e 12,2% (316), públicas. De 2.580 IES, 1.941 são Faculdades, 393 Centros Universitários e, apenas 205 Universidades. As Faculdades e Centros Universitários não são obrigados a realizarem pesquisas nem ações de extensão com as comunidades e a sociedade.
Nesse contexto, a rede privada ofertou 95,9% (23.681.916) das mais de 24,6 milhões de vagas. Já a rede pública foi responsável por 4,1% (1.005.214) das ofertas, com 65,5% (658.273) dessas vagas em instituições federais. Na modalidade de Educação à Distância (EaD), a oferta de vagas foi de 77,2% (19.181.871); já as presenciais representaram 22,8% (5.505.259). As instituições privadas concentraram a maioria dos matriculados: 79,3% (7.907.652). Já as instituições públicas registraram 20,7% (2.069.130) das matrículas.
O pesquisador José Marcelino Pinto (USP) alerta que o ensino superior no Brasil cresce sob uma forte lógica de mercado. “Na verdade, é um sistema disfuncional, porque ele cresceu na lógica do mercado, não na lógica da necessidade do país”, diz o pesquisador.
É uma lógica e um movimento que assusta e coloca na frente dos estudantes uma mercadoria, que nem sempre está atrelada à qualidade ou a possibilidades futuras a esses estudantes, muito menos propósitos de vida e um projeto de país.
Natureza dos maiores cursos
O Censo do IBGE identificou a predominância e cursos nas áreas de Gestão e Administração, Direito, Formação Professores e área da Saúde com maior número de graduados no Brasil: Gestão e administração (4.073.666), Formação de professores sem áreas específicas (3.108.277), Direito (2.467.521), Promoção, prevenção, terapia e reabilitação (1.370.508), Contabilidade e tributação (1.143.621), Enfermagem (898.464), Letras (887.873), Psicologia (597.731), Medicina (553.538) e Engenharia Civil e Construção (518.252).
Em 2022, o Brasil tinha 2.467.521 pessoas graduadas na área do Direito e, apenas, 553.538 pessoas graduadas na área de Medicina. Em 2022, havia uma pessoa com curso de graduação concluído em medicina para cada 186,9 moradores do Distrito Federal. Já no Maranhão, havia 921,7 moradores para cada pessoa com curso de graduação concluído em medicina.
A distribuição da população com nível superior completo por cor ou raça difere bastante entre as diferentes áreas detalhadas dos cursos de graduação concluídos. Entre as pessoas com graduação concluída na área de “Medicina”, por exemplo, 75,5% eram da cor ou raça branca.
No fomento da pesquisa, pretos e pardos ainda são minoria entre bolsistas de produtividade do CNPq no Brasil. De 2013 a 2023, quando observada a cor autodeclarada pelos bolsistas, praticamente não houve mudanças. Em 2013, por exemplo, os brancos eram 72% dos pesquisadores cujo pedido de bolsa foi atendido. Em 2023, último ano para o qual há dados do CNPq disponíveis, eles eram 70%. Pardos, por sua vez, passaram de 8% para 10% e pretos, de 1% para 2%, também comparando o mesmo período.
Mulheres no serviço social e enfermagem
A área de Serviço Social tinha a maior participação feminina, considerando-se as 40 áreas detalhadas com maior ocorrência. Em 2022, 93,0% das pessoas com curso de graduação concluído em “Serviço Social” eram mulheres.
As mulheres registravam, também, participação expressiva entre as pessoas com cursos de graduação concluído em áreas como “Enfermagem” (86,3%) e “Formação de professores sem áreas específicas” (92,8%). No polo oposto, apenas 7,4% das pessoas com curso de graduação concluído na de “Engenharia Mecânica e Metalurgia” eram mulheres.
Diversidade, políticas de quotas e inclusão
Em 2022, a instrução das mulheres com 25 anos ou mais de idade superava a dos homens. Entre elas, 20,7% tinham nível superior completo. Entre eles, essa proporção era de 15,8%
Em 2000, a proporção da população branca com 25 anos ou mais que tinha nível superior (9,9%) era mais de quatro vezes superior ao verificado na população de cor ou raça parda (2,4%) e preta (2,1%).
De 2000 para 2022, essas proporções se elevaram 2,6 vezes para a população branca (25,8%), 5,2 vezes para as pessoas de cor ou raça parda (12,3%) e 5,8 vezes para a população preta (11,7%). Trata-se de uma inclusão e expansão tímida a exclusão racial histórica e estrutural brasileira.
Educação básica
De 2000 a 2022, a frequência escolar cresceu nos grupos etários até os 17 anos. Para as crianças de 0 a 3 anos, a taxa de frequência escolar bruta saltou de 9,4% para 33,9%. Na faixa de 4 a 5 anos, a frequência subiu de 51,4% para 86,7%. No grupo de 6 a 14 anos, próximo da universalização, a taxa foi dos 93,1% aos 98,3%. Na faixa de 15 a 17 anos, a frequência subiu de 77,4% para 85,3%.
O único grupo com recuo na frequência escolar foi o dos 18 aos 24 anos: 31,3% em 2000 e 27,7% em 2022, devido à redução da parcela desses jovens no ensino médio ou em níveis anteriores. Mesmo com várias reformas no ensino médio neste período de duas décadas, talvez inclusive devido a elas, mais de um quarto (26,7%) dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos que frequentam a escola estão matriculados no ensino fundamental, ou seja, tem atraso na trajetória escolar. A qualidade e a conclusão do ensino médio continua sendo o maior desafio da educação brasileira neste século 21.
Refletindo sobre estes dados do IBGE e nos referenciando em estudos como de José Marcelino Pinto (2024) e Fávero, Consaltér e Tonieto (2020), constata-se que a expansão da Educação Superior está mais associada ao crescimento de um mercado das IES com fins lucrativos do que efetivamente à oferta de acesso e qualidade da formação em nível superior.
Neste setor privado a disputa por alunos, o grande número de matrículas na modalidade à distância, a baixa qualidade da formação dos egressos e o reduzido quadro de docentes, confirmam a máxima do mundo empresarial: “fazer mais com menos”.
Nesta perspectiva, o censo do IBGE evidencia uma expansão disfuncional, desorganizada, sem planejamento nacional e regional, com oferta predominantemente mercantil, concentrada nos estados e cidades mais ricas, para população branca de classe média e alta, com formação concentrada em poucas áreas, como: gestão, administração e direito.
As necessidades do Brasil e de suas diversas regiões, o sonho de milhões de estudantes, a promoção da cultura, da ciência e da pesquisa não são levadas em consideração nem se constituem prioridades deste projeto educacional brasileiro predominante. Persiste uma oferta elitista em pleno século 21 para apenas 18,4% dos estudantes até 29 anos, com uma exclusão dos demais 82 de jovens trabalhadores, reproduzindo e perpetuando a desigualdade histórica e estrutural de nossa sociedade brasileira.
Em 1982, em uma conferência, o antropólogo e educador brasileiro Darcy Ribeiro afirmou: “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Hoje, mais de 43% da população carcerária brasileira é de jovens entre 18 e 29 anos e o Brasil é um dos países que mais mata jovens no mundo.
No país, em 2022, dos 46.409 homicídios registrados, segundo o Atlas da Violência de 2024, 49,2% vitimas eram jovens entre 15 e 29 anos. Foram 22.864 jovens mortos, média de 62 assassinados por dia. Considerando a série histórica dos últimos 11 anos (2012-2022), foram 321.466 jovens vítimas da violência letal no Brasil.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.