OPINIÃO

“Melt-down”

Veríssimo / Publicado em 7 de outubro de 1997

Em que uma bolsa de valores se parece com uma usina atômica?

Em primeiro lugar, poucas pessoas sabem como funciona a bolsa, e ainda menos sabem como funciona uma usina atômica. O acesso aos pregões da bolsa, como o acesso ao bojo de uma usina atômica, também é restrito, e os visitantes também ficam segregados, longe da atividade principal. É preciso proteção para entrar numa e noutra, e a conseqüência da falta de proteção é parecida: as pessoas se queimam.
Em muitas bolsas os funcionários também usam roupas especiais, como nas usinas, e o que acontece nas bolsas e nas usinas é essencialmente a mesma coisa, uma ebulição controlada que produz energia, e na qual há o risco sempre presente de acidentes impensáveis em qualquer outro tipo de atividade. Pois tanto nas bolsas como nas usinas nucleares, nunca se sabe onde e como um acidente vai acabar. “Síndrome da China” seria o nome dado ao hipotético “melt-down” de uma usina nuclear deste lado do mundo que só acabaria quando, depois de atravessar a Terra, a radioatividade descontrolada abrisse um buraco na China. O último quase “melt-down” do sistema financeiro mundial começou na China e em minutos estava deste lado do globo.

A maior semelhança entre as bolsas e as usinas nucleares é que, quando funcionam, as duas beneficiam um número limitado de pessoas e quando se acidentam ameaçam todo o mundo. O proveito dos dois sistemas é seletivo, a contaminação não escolhe quem atinge. E nos dois casos, cada vez que as autoridades dizem que o problema foi resolvido e não há razão para preocupações, aí é que as nossas preocupações aumentam.

Maldita

Desconfio que os economistas chamam a economia de “ciência maldita” porque é a única maneira de chamá-la de ciência. Ela não é uma arte e só circunstancialmente é um ofício. Melhor a discutível definição de ciência negra do que definição nenhuma.

A economia é mesmo uma grande tentativa. Trata das realidades mais reais do mundo, que são os apetites humanos, e das mais abstratas, como o valor do trabalho, do tempo e das coisas. Tenta tratar o imponderável com precisão, mas sempre deixa claro que a sua ciência só vai até onde começa o mistério do comportamento humano. Assim com a sua própria desculpa embutida. Os búzios e os astros e as teorias e as receitas estão sempre certos, as pessoas é que nem sempre fazem o previsto. No fim do ano em que nem a Lucélia Santos casou com o príncipe Edward nem a economia se comportou como eles disseram, tanto os videntes quanto os economistas continuam com sua reputação intacta e seus clientes crentes.

Mas se é uma atividade à prova de fracassos, não é uma atividade invejável. Os economistas do governo tomam suas decisões, apertam os botões que têm que apertar e depois precisam esperar para ver como vão se comportar essas coisas terríveis, indefiníveis, imprevisíveis que são pessoas. Elas vão gastar, vão poupar, vão correr ao banco, vão acreditar, vão cooperar? A gestão econômica é uma forma de bruxaria, que até a invenção do impulso eletrônico era a única forma de controle a distância que existia. Mas é uma bruxaria de efeito retardado e incerto. A agulha atravessada no boneco pode só funcionar no ano que vem, e na pessoa errada. Como as bruxas, os economistas também têm sua linguagem estranha e suas fórmulas esotéricas, e andam em bandos. Como as bruxas, também precisam ter o coração reduzido a uma passa, ou fingir que têm, para não se impressionar com cenas de choro e miséria.

Não é verdade que se alimentem de ratos com farinha de morcego. Mas não os inveje.

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