OPINIÃO

Dois em um

Veríssimo / Publicado em 25 de agosto de 1999

É injusto comparar os dois Fernandos. O Collor sempre foi meio assustador, o Éfe Agá é um homem civilizado e simpático com o qual você gostaria de conversar sobre tudo que houve, depois que ele deixasse a Presidência, de preferência na semana que vem. Mas não há como tratar os dois como um só, já que a diferença é só de personalidades e um continuou o que o outro começou. No fundo, a soma dos dois Fernandos dá o Menem, que sucedeu a si mesmo na tarefa de escancarar a economia do país e seguir fielmente o consenso de Washington e agora assiste com a mesma impotência ao modelo dependente demais desmoronar: O Menem da primeira fase também era um excêntrico, com suas suíças ex-travagantes e seu ar de cabareteiro. Pouco a ver com o estilo do primeiro Fernando, mas assustador do mesmo jeito. Depois viu-se que Menem era mais respeitável, mais Éfe Agá do que parecia. O governo de Menem na Argentina pode ser descrito como o governo do Collor e do Éfe Agá sem o alívio cômico do interlúdio Itamar.

É difícil saber o que falta – salvo, claro, uma saída – para concluir que a sujeição total à essa globalização em que só um ganha é um fracasso binacional a caminho de se tornar uma tragédia continental. AArgentina está até pior do que nós, talvez porque tenha se sujeitado ainda mais abjetamente. Depois de anos de submissão, a recompensa do Menem deles é esse final melancólico de penuria y desilusión. Enquanto isso, nossos dois meio-Menens trouxeram o país a esse estado de pré-guerra civil no campo e nas ruas, e o atual não aprendeu nem com a desgraça do protótipo e vizinho a pôr seu neoliberalismo de molho.

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Há dias eu comentei uma suposta declaração do novo ministro da Justiça antes de tomar posse, que era balela falar em recuperação social nas prisões. Recebi uma correspondência do ministro em que ele explica que defende uma política penitenciária “que diminua ao máximo o risco de reicidência e possibilite preparar o preso ao trabalho e à cidadania.” No entanto, diz, “cadeia não é escola”. Só os réus perigosos devem ser segregados, já que há outras formas de pena em liberdade. “A minha frase”, descreve o ministro, “nada tem de contrastante com minha formação de defensor dos direitos humanos. Ao contrário, é coerente. Cordialmente, José Carlos Dias”. Obrigado, ministro.

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No filme O Exterminador do Futuro, um governo tirânico do século 21 tenta livrar-se de um líder rebelde mandando um assassino ao passado para matar a sua mãe e assim cortar o mal, ou, no caso, o bem, pela raiz. Já que não conseguem vencê-lo decidem evitar que ele nasça. Se dispusesse dos mesmos meios, o governo Éfe Agá poderia ter evitado a greve dos caminhoneiros mandando um exterminador ao passado para eliminar quem decidiu que todo o transporte de carga no Brasil seria feito por estrada em vez de ferrovia ou hidrovia. Em algum ponto do passado, alguém fez essa infeliz opção. Um tiro bem dado, nele ou na sua mãe antes de tê-lo, seria a única maneira de impedir a situação das últimas semanas, quando o governo acuado pelos grevistas, se viu sem opção alguma.

Há anos que agricultores sem terra, organizados e mobilizados como os caminhoneiros, fazem o mesmo barulho sem resultado. Nas cidades, trabalhadores sem emprego, mais numerosos e desesperados do que os caminhoneiros, nem fazem barulho, ou pelo menos um barulho proporcional ao seu número e à sua desesperança. Nos dois casos, o governo tem a alternativa que não teve no caso dos caminhoneiros, a da negligência planejada. Sem-terra e sem-emprego fazem parte do risco calculado do modelo, fazem até – de uma maneira perversa – parte da estratégia de chantagens com que o governo mantém seu apoio político e seu controle do mercado. É fácil resistir ao que não se dá importância. Não há como resistir a um país parado, com frutas apodrecendo e pintinhos morrendo nas estradas, porque simplesmente não existe out r o modo de ele se mexer. Acrescente-se a isso o fato de o “tal de Botelho”, líder da greve dos caminhoneiros, ser do PPB e ter contado com a ajuda do Dornelles para se acertar com o governo, e de empresários do setor apoiarem o movimento, e conclui-se que os rodoviários tinham tudo – além da razão – que os outros não têm para comover o poder. A lição dos caminhoneiros para as outras vítimas da negligência governamental é: sejam insubstituíveis, sejam intratáveis e tenham amigos certos. Ou arranjem uns pintinhos para morrer por vocês.

 

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