Ilustração: Ricardo Machado
Ilustração: Ricardo Machado
“A injustiça é é relativamente fácil de aturar, é a justiça que fere.”
A frase de H. L. Mencken se adapta ao Brasil, onde aprendemos a conviver com a injustiça indignando-nos, passageiramente, com tudo e mudando nada, a não ser a retórica da nossa falsa inconformidade.
Elegemos e reelegemos as mesmas estruturas políticas, não porque elas mudem de origem ou de hábitos mas porque mudam de discurso. Como o seu compromisso com a mudança e com a justiça é sempre da boca e da tribuna para fora, é sempre retórica, basta mudar a retórica – e uma ou outra cara – para assegurar a sobrevivência.
Sabemos como ninguém verbalizar nossos problemas e as suas soluções, mas na hora de trocar a eloquência pela prática preferimos ficar no discurso, e a eloquência da acomodação, ou da capitulação, é a mesma da indignação.
Para deixar de ver o mundo pela ótica de Marx e passar a vê-lo pela ótica do FMI não é preciso mudar de cara, não é preciso nem mudar de óculos, basta ajustar a eloquência. É, sim, relativamente fácil conviver com a injustiça. No Brasil, não fazemos outra coisa há anos. E sempre pelo método mais simpático, o da desconversa.
Quanto à segunda parte da frase de Mencken, o Brasil também é a prova. A justiça fere. Ou feriria, catastroficamente, se fosse aplicada com toda a pureza e o rigor dos seus princípios básicos.
Imagine-se o caos, no campo e nas cidades, se de uma hora para a outra fosse instalada no país, por uma mágica, a equanimidade absoluta. Não uma utópica sociedade sem classes e conflitos, não uma totalitária justiça sem recursos ou clemência, mas o simples conceito de direitos e oportunidades iguais para todos, revogados todos os sofismas em contrário.
Alguém já disse que uma condição para que o estado constitucional sobreviva no Brasil é que a Constituição não seja levada muito a sério. Poderia se dizer, com a mesma sabedoria ou cinismo, que uma condição para que a justiça funcione mais ou menos no Brasil é não exigir que ela funcione melhor, mais disposta a contrariar interesses, revolucionar costumes, aplicar a retórica e dar dentes ao discurso. Ou seja, mais disposta a ferir.
Ainda o livro de memórias da Esther Williams, em que ela conta tudo sobre maridos exploradores e namorados estranhos, como o Jeff Chandler, que se vestia de mulher e preferia sapatos Gucci.
Gostei de saber que Esther Williams não tem nada a dizer no seu livro contra outro contemporâneo, o Victor Mature, a não ser que era um namorador compulsivo. Defendo a tese que a evolução da vida no planeta teve um único fim, o de produzir Victor Mature.
Desde as primeiras amebas boiando no caldo primevo, não havia outra intenção na Natureza senão a de, através de milênios e milênios de tentativa e erro, chegar ao Victor Mature. Tudo que se desenvolveu entre o protoplasma e o Victor Mature foram equívocos descartados.
Você, eu, o rinoceronte etc. somos as sobras do processo. Há quem sustente que o que motivou a matéria a evoluir foi a busca da sua própria superação, que o fim desejado era a inteligência artificial, o computador, finalmente o conhecimento que independe do corpo e dos sentidos e portanto torna o homem, a penúltima etapa antes da perfeição, obsoleto.
Não era. Era o Victor Mature. Seus peitorais e a sua cara de burro satisfeito, a matéria no seu estágio supremo de auto justificação.
Feito o Victor Mature, a evolução perdeu o sentido. E morto o Victor Mature, resta à vida orgânica mais alguns anos de irrelevância sobre a Terra antes de desaparecer por completo, já que sua missão está cumprida.
Este sentimento de fim de tudo, esta premonição de que estamos entrando num milênio supérfluo – até, quem sabe, todos estes desastres naturais – não passam, no fundo, da ausência do Victor Mature.
E é confortador saber que, ao contrário do Jeff Chandler, se Victor Mature alguma vez usou sapatos Gucci, foram dos pra homem. A espécie está de alguma forma redimida da sua pretensão e da sua brevidade.
Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.