Não sei o que acontece comigo; sei que há uma estrela sapeca que me acompanha enquanto vai sendo minha guia. Me trata como seu eu fosse uma carta e me destina enquanto me escrevo. Quando comecei a anunciar minha ida à Croácia, o assunto predileto da imprensa era a guerra na Iugoslávia. E todos entre amigos, conhecidos e público em geral, salvo raríssimas exceções, imploravam pra que eu não fosse, diziam, entre sádicos e cuidadosos, que a guerra era lá, que uma bomba ia cair na minha cabeça, que a Otan estava errando alvos.
Rendida e com medo, liguei pro Drazen Katunarick, que é meu anfitrião lá, e quem me convidou, depois de conhecer meu trabalho no Canadá: “Elisa, este é um evento internacional, se houvesse perigo nós seríamos os primeiros a cancelar. Pare de ver televisão. Isso é o mesmo que eu não ir a teu país porque acabaram de assassinar o vice do Paraguai. Ou por causa da diária guerra entre traficantes no Rio de Janeiro.”
Fui. Viajei pensando; todo mundo viaja normal pra Miami, Paris, Nova York, Londres… eu, meu negócio é Cuba, Cabo Verde, Croácia… Por que, meu Deus? Será que vou em missão? (Metida…)
Abertura oficial do festival com poetas e escritores de várias partes do mundo. Irlanda, França, Inglaterra, Portugal, Egito, Canadá, Espanha e o Brasil.
Eta paisinho bonitinho essa Croácia! O transporte corrente é o bonde. O país tem nove anos de independência. As pessoas são alegres e não há vestígios de guerra nas carinhas que vi pelas ruas. Zagreb, que é a capital, preserva uma coragem e uma capacidade de reconstrução incríveis e as calçadas são apinhadas de bares, lindos cafés com cadeiras em tantas ruas destinadas ao pedestre, ao papo, ao cigarrinho e o indispensável bom vinho. Ah, é outro mar. Cores do Adriático, meu filho! Não é desses verdes que se vê por aqui.
Havia tradução simultânea do croata para o inglês e para o francês. E eu ficava tentando pescar naquele mar de palavras nunca ouvidas, naquele mundo de consoantes sempre mais perto de suas iguais que das vogais. Quase um gueto de consoantes, pra não dizer império. Umjetnost, por exemplo, não quer xingar ninguém. Só quer dizer arte. Fiquei ouvindo os discursos do prefeito, do presidente da Associação dos Escritores de Zagreb, e, de vez em quando, no meio do oceano de minha ignorância daquele idioma, algumas palavras me tiravam subitamente da tradução. Palavras como dia, diploma, duplo, colega, prostitka estavam lá com o mesmo sentido nosso. Adorei. Até que passei por um tipo todo grande, todo farto de altura e largura, e aqueles olhinhos apertadinhos de tão sorridentes, aquela cara com a maior cara de Papai Noel, só que sem ser velhinho, começa a cantar: “ Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…” Aquilo foi um beijo em meus ouvidos. Todo mundo que viaja sabe que esse é nosso Hino Nacional para o mundo e funciona. Me deu uma alegria de ouvir português e eu sorri. Olha, eu adoro seu país, ele me disse, adoro o Brasil, vamos falar brasileiro?
E a festa da abertura rolando e a gente tomando vinho e brincando. Até que o assunto entornou pro lado da poesia e ele era chileno e começamos a falar de Neruda, que eu adorava Neruda e ele também. Mas eu sou pior, retruquei, quando saí daquele filme, O Carteiro e o Poeta… Você viu? Vi. Pois é, quando saí daquele danado daquele filme, fiquei passando mal de tanta beleza. Saímos eu e meu amor do cinema, e eu passando mal. Meu amor me ofereceu Sonrisal, cachaça, whisky, aspirina, a resposta pra tudo era igual e era não. Se eu queria um Neruda então? Aceitei o livro mas fui dormir, tentar dormir. Não consegui, tive que levantar e fazer esse poema O Carteiro e o Poeta. O papai noel me olhava, atento, escutava curiosamente o meu relato. Você tem o poema aí? me mostra?
Peguei meu caçula na bolsa, “Euteamo e suas estréias”, que eu sou mulé de falar e mostrar. O homem leu e começou a ficar lá todo emocionado. Posso te contar um segredo? Ele perguntou. Pode. Fui eu que escrevi essa história. Sou Antônio Skármeta. Silêncio. Era minha vez de me emocionar de ficar com vergonha de juntar os pauzinhos na minha cabeça: por isso tanto nos fotografavam e eu achei que era por causa de mim, brasileira, bicho mulato e folclórico fazendo sucesso em terra de cego. Ofereci o livro a ele. Obrigada muito obrigada era para a palavra que eu sabia dizer e quando corri pra outra, era hwala que também significa obrigado em croata. No desconcerto, aprendi. Aproveitei que ele foi falar com uns jornalistas para ler o programa direito: ele era o convidado especial do encontro. Era o cara!
Cujos avós eram croatas, cuja vómaternidade fazia dele a semente mais geradora da terra, mais Oscar, mais ilustre mesmo. Merecidamente. Todo mundo sabia que ele era ele, eu acho, menos eu. Detalhe: no programa tinha até foto.
Depois disso nem precisava ter depois, mas tinha. Fiz minha conferência no outro dia, cujo título é Uma Poesia que Fale. Ele assistiu e quis uma cópia do texto. Contou-me a história desse seu livro, de sua ligação pessoal com Neruda. Viu o espetáculo que apresentei com poemas ditos na minha língua e traduzidos para o croata, por minha tradutora Tatjana Tarbuk, que entendeu tudo direitinho e fez os croatas e demais acabarem chorando como no Brasil, graças a Deus!
De lá segui pra Espanha. Quando cheguei em Barcelona a guerra tinha acabado. Li em La Vanguarda, já no avião chegando.
Parecia, cá no meu destrambelho lógico, no meu entendimento, que a compreensão poética é antibélica e que era eu que tinha acabado com a guerra… Eu e mais todos que trabalham incansavelmente com o poder da palavra. Era eu. Eu que peguei o chinelo e falei: Parou! Acabou a palhaçada! Cadê sua mãe, menino? Disse pra um. Cadê a sua? disse pra outro. E o chinelo cantou.
Não o meu mas o da minha estrela sapeca que sabia de tudo desde o começo. Hwala, eu disse baixinho pra ela de cima de minhas próprias linhas. Carta que eu sou.
* Elisa Lucinda é atriz e poeta