Todo dezembro vinte e quatro minha avó pegava um peru lá de casa para o ritual da morte. Eu de vestidinho azul de bolinhas, perninhas abertas apoiando o queixo nas mãos e os cotovelos nos joelhos, sentadinha na grossa raiz do abacateiro. Meus olhos assistiam aquele pitoresco sacrifício do bicho sob a fina pelúcula da infância. Ela corria atrás dele naquele quintal que eu achava enorme por ser pequena e, com uma autoridade de carrasco, falava-lhe palavras de ofensa diante da tentativa de defesa dele. Eu tinha pena mas não podia demonstrar. Não era bom para o ritual e ele custava a morrer se a platéia se apiedasse.
Vovó agarrava-o por trás pelo pescoço e o punha entre suas pernas para que essas imobilizassem as asas. Com a mão direita segurava apertando o pescoço, forçando-o a abrir o bico e com a outra jorrava pela goela adentro peru afora um copo de bom aguardente de cana. Geralmente usava cachaças especiais curtidas em ervas, carvalhos e raízes. Soltava-o. O peru rodopiava tonto e embriagado e “feliz” pelo quintal, enquanto meus olhinhos riam disso. Não andava reto, cantava desafinado o seu sucesso eterno glu-glu-glu. Eu assobiava que era para ele responder com o canto. Eu achava que a vovó fazia isso para que ele não sofresse muito; bêbado fica meio anestesiado. Eu achava que era pura bondade dela. Mas vendo agora a lembrança do olhar dos galos, galinhas, patos e cachorros, penso que de todos os animais, só eu custei a saber a verdade. Algumas aves até choravam no seu cacarejar; afinal, o pobre e elegante condenado era conhecido de todos ali. Ouço o canto doído dele, o canto de minha avó amolando a lâmina na escada da cozinha, o assobio do vento no meu amarelo cabelo sarará. Ouço o som de tudo lixando o céu.
Depois minha avó, com mais facilidades, capturava-o pra o fim. Dessa vez com o peru de novo entre as fortes e longas pernas, trazia uma afiada faca na mão direita. Virava o pescoço da vítima para trás, e eu com todos os dedos na boca, nervosa. “Não sinta pena, Elisinha, vá lá pra dentro!”. Metade de mim obedecia a ordem, enquanto a outra metade escondia o corpinho magro atrás do fiel abacateiro e com um só olho continuava a ver a parte pior de se ver: o corte fatal, fino e fundo no pescoço do bicho e o sangue esguichando longe pra desembocar na tigela que ela, prevenida, usava para recolher a vida que seria depois o molho, eu acho.
Todo ano meu coraçãozinho batia forte e descompassado nessa hora. Pensava: ainda bem que estava bêbado, morreu feliz, sem sentir. Mais tarde, muitos anos depois, já mulher, eu fui saber que a cachaça de véspera era pra amaciar a carne dele; nada tinha a ver com emoção, com anestesia, com qualquer coisa do ponto de vista da dor do peru e, sim, tratava-se de uma medida de ordem absolutamente culinária, uma providência tomada em vida para um destino de forno. Esse cheiro maravilhoso “dele” recheado com farofa e ameixas, o cheiro da pele de boneca nova no meu sapatinho da sala sob a árvore piscando, o som dos papëis de presente desembrulhando que eu e meus irmãos fazíamos… era Natal!
Mesmo contendo o sacrifício isso mora na minha emoção como felicidade. Penso no futuro me empurrando pra frente. Que avó serei eu, meu Deus, no cinema do meu netinho, e o que será pra ele a felicidade?
* Elisa Lucinda é atriz e poeta