Neste último Carnaval, me iludi pensando que iria continuar usufruindo a rotina do silêncio da mata-virgem onde moro. Me enganei feio. Pois -até parecendo que conhecem nosso calendário – dois grandes bandos de bugios passaram três dias roncando em ritmo de samba. Depois, sim, voltou a imperar o silêncio. E, na quietude, pude melhor apreciar minhas imagens do passado.
Em Piratini, até que o juiz Décio d’ávila determinasse que crianças não mais participariam dos bailes dos adultos, muito me esbaldei cantando marchinhas do ano, sambando, enfezando, jogando lança-perfume e tentando descobrir quem eram os mascarados que ficavam só mexendo com a gente. Certa vez, compareci ao baile trajando roupa gaúcha, mas com o lenço-de-pescoço me encobrindo o rosto como se fosse máscara. Fui mexendo com meio-mundo, incomodando mesmo. Eu tinha pegado emprestada a bombacha da minha prima Lenita e, por causa do modelo feminino, sem bolsos nem “abertura”, ficavam perdidos os que tentavam descobrir a identidade daquela guria tão exibida. Até que um vidro de lança-perfume rebentou bem juntinho do meu rosto, tontiei, senti tamanha dor nos olhos que até pensei que estava ficando cego, gritei “Socorro! Socorro!” e terminei me desmascarando para poder respirar melhor. Naquele ano passaram a me chamar de Socorro, mas o apelido não pegou e voltei a ser simplesmente Luiz Carlos.
Fui prestar exame de admissão ao ginásio, em Pelotas, e aí sim conheci um Carnaval de arromba. Na rua. Com milhares de foliões começando por recepcionar o Rei Momo em seu esplêndido trono alegórico e, depois, aplaudindo o desfile dos cordões rivais, com destaque para o do Galo e seu refrão contagiante: “é o Galo, é o Galo, sem esporão!” Mas, naquele ano, para homenagear o novo delegado de Polícia, Dr. Galeão, mudaram para ” é o Galo, é o Galo, é o Galeão!”
Meu pai havia se mudado de Piratini para Canguçu, para aqui me toquei nas férias de verão e, logo à chegada, tornei-me fã e amigo do jovem Daily, misto de cantor e animador de auditórios, que era o encarregado de planejar o Carnaval da cidade. Dei a idéia de que também fizéssemos uma grandiosa recepção ao Rei Momo; ele topou, logo encomendou a feitura de um belo carro alegórico, mas não conseguia atinar com alguém capaz de desempenhar à altura o papel do folião-rei e terminou me convidando para tal empreitada. Topei, vibrando. Mas minha mãe não topou e negou-se a ajudar-me na escolha da fantasia adequada. Resultado: o público veio a recepcionar um cara sem nenhuma pinta de rei; quando muito, de varredor de palácio. Fim da história.
Indo estudar em Porto Alegre, achei que iria encontrar um Carnaval ainda maior que o de Pelotas. Ledo engano. Se não fossem as “tribos” fantasiadas de índios e desfilando na Ilhota e outros pontos da periferia, nada de especial. E, ainda assim, sem público para aplaudi-las, pois a tradição da cidade, mesmo, era se mandar para ver as ondas do mar dançando em Tramandaí…
Depois, me mudei para São Paulo. Ainda maior chochice, apesar do empenho carnavalesco de alguns blocos do bairro Bexiga.
Casei-me em fevereiro de 1960, com uma moça residente em Porto Alegre e, no mesmo dia, coloquei-a, num avião para irmos morar em São Paulo. Estávamos em pleno Carnaval, e perguntei-lhe se aceitava darmos uma esticada até o Rio de Janeiro. E, apesar de sermos dois desconhecidos em meio à multidão da Avenida, curtimos a maior festa de casamento deste mundo. Que explosão de cores, de luzes, de risos, de fraternidade! Mais que Carnaval, uma viagem a um mundo sobrenatural onde quem manda é a alegria. Inesquecível.
* Luiz Carlos Barbosa Lessa é jornalista, historiador, folclorista e escritor.