Boa parte da crítica brasileira rotulou o filme Beleza Americana como caricatural e concessivo à Hollywood, na abordagem de um tema que outros recentes filmes teriam tratado com maior coragem. Posso estar redondamente enganado – depois de anos emburrecendo com os Telecines, a gente fica em dúvida se viu um grande filme ou se a tela é que era grande – mas saí maravilhado do cinema e, como ainda não encontrei fundamentação que me fizesse mudar de idéia, vou arriscar uma defesa.
Dizer de Beleza Americana que é recheado de clichês e caricaturas é dizer da primeira e óbvia intenção do filme, qual seja, trabalhar o estereótipo familiar suburbano da sociedade norte-americana. Os personagens são reduções que fogem à verossimilhança e ao mesmo tempodela não se li-vram – o ideal americano é mesmo feito de personagens mal-acabados. é certo que não há muito de original em desnudar a solidão, a frustração e outras mazelas humanas maquiadas pelo controle social. Mas o filme não fica nisso, apenas parte disso para colocar essas máscaras já borradas em imprevisível confronto com um vírus do desejo à solta, Lester Burnham, o personagem de Kevin Spacey.
Não assisti Felicidade, que dizem ser a versão original e mais contundente da mesma história. Pode ser, então. Beleza Americana parece mesmo estar pagando tributos ao cinema independente americano no vídeo-olhar do personagem Ricky que nos apresenta boa parte da história, e no seu ideal de beleza – a cena de um saco plástico esvoaçante, extraída de um curta de vanguarda novaiorquino. Mas onde poderia extrapolar nos desajustes, onde poderia facilmente evoluir para um banho de sangue e amoralidades banais, o filme evita o estafante discurso do sintoma e vai além.
O ápice da história, que tanto alivia quanto incomoda, é a cena em que Lester Burnham não come a gostosa amiga de sua filha. E não come porque algo, surpreendentemente, lhe desperta o afeto. Lester Burnham parece não dar a mínima para nada, não se importa em ser traído pela esposa e acredita-se que comeria a amiguinha da filha, virgem ou não, com o maior prazer. De fato, não é propriamente a confissão de virgindade que o detém. é, sim, o patético motivo dessa confissão, em que a adolescente diz temer pela avaliação do seu (dela) desempenho.
Surge ali a percepção da voracidade humana em ser objeto do reconhecimento, da afeição do outro, como ainda maior que a de ser sujeito da libido. Lester Burnham não é bonzinho, não se redime de nada naquele momento, apenas constrói para si um contorno moral em nome do afeto (da filha) porque este lhe é indispensável, e é este afeto que o filme quer mostrar como o limite possível a deter (e conter) o desejo. é com essa percepção viva que o personagem é assassinado. Algo nele escrito, então – e inscrito com maestria por Kevin Spacey -, sobrevive a narrar em off a própria e longa morte, observando irônico: “but, of course, you will know”.
Beleza Americana é obviamente um filme sedutor para uma América que há tempos insinua questionar-se, sente falta de quem a narre, choraminga sobre si própria com um revólver escondido nas costas. Mas tenho dúvidas se a academia sabe o que e por que o premiou. O olhar do diretor inglês Sam Mendes exala compaixão (e quem haveria de negá-la?) sem complacência e faz a diferença. A América que sempre se deu o direito de ser chamada assim, sem sobrenome, apenas América, parece estar sentindo falta – veja só – de um norte.
*Nei Lisboa é cantor e compositor