OPINIÃO

Água, água…

Luis Fernando Verissimo / Publicado em 7 de dezembro de 2000

Existe um cartum antológico do marciano perdido no meio de um deserto, se arrastando pelo chão e pedindo: “Amoníaco, amoníaco…”

As variações possíveis sobre o tema são infinitas.

Um inglês arquetipal no meio do deserto, há uma semana sem beber uma gota, se arrastando pelo chão e pedindo: “Gin-tônica, gin-tônica…”

O pobre coitado que, além de da sedem está um pouco nervoso com a situação:

– Água com açúcar, água com açúcar…

E, claro, o náufrago abandonado no meio do oceano, já sem forças para se manter à tona, só com a cabeça fora da água e pedindo:

– Um deserto, um deserto…

Uma vez também fiz um cartum (está bem, não era antológico) em vários quadros. No primeiro quadro o homem, perdido no meio do deserto, com a língua de fora, pedia “Johnny Walker Black Label, Johnny Walker Black Label…” Dois quadros depois, o homem pedia “Red Label, Red Label…” E no fim, desesperado, “Drury’s, Drury’s…”

O pudico, sozinho no meio do deserto, longeda civilização e seus recursos, de repente vê uma miragem no horizonte e sai correndo em sua direção.

– Um mictório público, um mictório público…

Mas a pior miragem é a que não era miragem.

O americano perdido no meio do deserto julga avistar um stand de hamburguers tremulando no bafo, sai correndo e descobre que é só um guichê de pedágio. Ou então é um stand de hamburguers mas não tem ketchup.

Um francês perdido no meio do deserto avista um oásis estocado com vinho branco, na temperatura ideal. Vai ver e não é miragem! O vinho existe mesmo! Mas – zupt!- a safra é de um ano inferior.

Um egípcio e um israelense, perdidos no meio do deserto do Sinai, chegam a um oásis. Quando se preparam para mergulhar na água, com roupa e tudo, percebem que estão sob a mira da arma de um palestino. O israelense se atira nos braços do egípcio e grita:

– Meu grande amigo, vamos morrer juntos!

O egípcio tenta fugir do abraço comprometedor mas é fuzilado pelo palestino, que grita:

– Traidor!

Depois, o palestino aponta sua arma para o israelense, que argumenta, indicando o corpo do egípcio:

– Perdi um grande amigo. Será que isto não é sofrimento bastante?

O palestino concorda e poupa a vida do israelens, que mergulha na água. Só para descobrir que não havia água nenhuma, era uma miragem.

– Se isto é uma miragem, por que você a guarda? – pergunta o israelense.

– Porque é só o que eu tenho – responde o palestino, misteriosamente.

O cronista perdido no meio de um deserto de assuntos:

– Uma parábola, uma parábola…

O Cláudio Coutinho perdido no meio do deserto, já quase delirando:

– Um ponteiro, um ponteiro.

O devoto:

– Água benta, água benta…

O depravado:

– Absinto, cigarros turcos e um anão albino. Absinto, cigarros turcos e…

O detalhista:

– Água potável, água potável…

O pedante:

– H2O, H2O…

O cavalo

– Égua, égua… (Desculpe)

O literato:

– Precioso líquido, precioso líquido…

O nostálgico

: – Gunga Din, Gunga Din…

O ambicioso:

– Um aguaceiro, um aguaceiro…

O prático:

– Um bebedouro, um bebedouro…

O calculista:

– Uma mulher bonita com um garrafão de água, uma mulher bonita com um garrafão de água…

O exagerado:

– Um carro-pipa, um carro-pipa… Com a Jacqueline Bisset na direção…

O Volkswagen:

– Ar, ar…

Um peixe dentro do Guaíba

: – Água, água (Sutil, sutil.)

* Do livro O Rei do Rock (RBS/Editora Globo, 1978)

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