Arte: Ricardo Machado
Arte: Ricardo Machado
Era ele bêbado pelas ruas do Sul cantando tango e recitando Baudelaire.
Pagando puta em cheque na cara dos anos 50. Das coisas que eu sei dele, fareja-se um artista. A arte é um talento, uma destinação tão violenta, no sentido não agressivo, mas sim no sentido espaçoso e volumoso da palavra que sabe-se lá do ela que é capaz quando sem escoamento.
Era ele Beto bonito levantando à noite, querendo mulher, querendo comer mulher, amar mulher e cantar e dizer poesia atrás das portas enquanto as devorava voraz no lugar do que chamamos insônia.
Beto cantava alto e vomitava versos como quem precisa criar uma ponte onde possam bicicletar aliviados cada soneto de seu grito.
Toda história que ouço se impõe em mim como mote, como sorte de eu entender o saber de que história aquela história está me contando.
A história de Beto me deixa imagem de um clown, de um artista cuja pulsação tão inevitável, sucumbiu a uma ordem letal sobre ela, cujo primeiro sintoma foi a desordem.
Do Beto sinto que queria os bois, as vacas, os cantos, os campos, a poesia e a vida.
A arte disso quando as pontes declamatórias dos tangos começaram a falhar a sua boca, quando sumiram as pontes, a arte disso como um Hulk lhe explodiu as cercas e bateu-lhe no dodói dos hectares proibidos.
Doído de Beto não era um doído só dele, não começou a doer nele.
Doeu nas bruxas há séculos atrás, doeu em Galileu, em Artaud, doeu no peito de todos os sábios, de todos os poetas, doeu no peito como uma tocha no ponto em que não se separa arte e dodói, no ponto em que no peito tudo é chama em substantivo e indicativo. O verbo exige. O verbo chama.
A história de Beto me doeu essa manhã. O exército de seu talento entrou dentro dele em guerra como ele, e esse exército morreu Beto.
Quando o que ele tinha de melhor encontrou todas as portas fechadas e virou morte. Beto virou portador de sua morte. No lugar do canto, como um canto desprezado no canto da boca, ela estava ali.
Um dia ele estava distraído e fez a besteira de engolir a própria saliva. A saliva de Beto engoliu ele.
Elisa Lucinda é colunista do Extra Classe – elisalucinda@radnet.com.br