Paris – Todas as indicações são de que continuo vivo. Atravessamos o Atlântico sem sustos. Confesso que procurei, entre nossos co-viajantes na sala de espera – e de espera, e de espera – do aeroporto Kennedy a cara de alguém capaz de seqüestrar nosso vôo da United para Londres e forçá-lo a pousar no colo da rainha, e não procurei entre os brancos. As circunstâncias nos transformam em calhordas: se entre os passageiros aparecesse o Caetano Veloso com uma barba mais comprida, eu não embarcaria. Não ajudou o fato de todos os seguranças do aeroporto de Heathrow, em Londres, terem exatamente o tipo físico que alertaria os seguranças do aeroporto Kennedy, inclusive alguns com barbas e turbantes, apenas uma amostra da grossa confusão em que nós e o Bush estamos nos metendo. Nos Estados Unidos há uma grande preocupação em poupar a população árabe e muçulmana da indignação geral, mas já houve mortes e é difícil fingir que raça e religião não dominarão o que vem por aí. Bush usou o termo “cruzada” por ignorância, mas pode ter sido o prenúncio de uma volta da clara divisão dos mundos que havia na Idade Média – uma simplificação que também escondia interesses e projetos que nada tinham a ver com o Deus de cada lado, mas que foi a responsável pela maior parte do sangue derramado. A tendência americana a simplificar é uma contrapartida assustadora às mortíferas simplificações dos fundamentalistas fanáticos. O que o mundo mais precisa no momento é de gente disposta a insistir que não é bem assim, que nada, nunca, é bem assim. Precisamos de sofismas, desconversa e peraís generalizados. Precisamos, urgentemente, de protelação criativa. Ou os simples nos matam.
Exemplo de nuance salvadora, impensável no tempo das cruzadas: uma das maiores angústias do pessoal do mercado quando a bolsa de Nova York abriu depois do holocausto era como se comportaria a casa real da Arábia Saudita, que tem muitos bilhões investidos em ações americanas. Suas majestades, parece, mantiveram a fé no capitalismo de papel e ajudaram a manter as perdas num nível tolerável. As guerras, tradicionalmente, eram boas para a indústria. Ainda não se sabe como a primeira guerra do século 21, de Bush, afetará a economia pós-industrial, já que também será a primeira guerra da globalização. Talvez não seja, literalmente, um bom negócio, e as razões comerciais atenuem a indignação. A interpenetração racial é outro exemplo de complicação bem-vinda. Mouros e cristãos já não se distinguem nem geograficamente com a mesma clareza de antigamente.
Enquanto esperava o vôo para Paris no aeroporto de Londres, fiz uma coisa estranha. Comprei uma gravata. Sei não, mas acho que foi um gesto de confiança de que a civilização continuará.