O Entre os alunos da oficina em São Paulo, havia uma senhora de 64 anos, D. Júlia, com seu batom, sua vaidade e sua busca, estava ali podendo ser avó da maioria e minha mãe. A aula começou. As dificuldades, a barreira dos tímidos, os equívocos dos desinibidos. Me perguntam se tímidos podem fazer poesia falada. Podem. Vão ter que brigar e ganhar da timidez. Que timidez pra mim não é modo natural. Ninguém fala que quando crescer quer ser um tímido. Ninguém também é tímido sozinho, entre 4 paredes. Vou então lidando com tremedeiras, gagueiras, medos e vícios. O pior deles talvez seja a herança que a era da “declamação” nos deixou: falar poesia na música que a rima impõe sem saber o que se está falando. Priorizando a forma e não o sentido. Os alunos foram ficando em polvorosa quando foi diminuindo as distâncias abismais entre o gesto e a palavra, entre o corpo e a fala, entre recitar e conversar. Parecia um mundo novo e seu paraíso de descoberta. E era. A mais nova, Clarice, veio dizer que tinha problemas graves de memória. Que aos 25 anos, sabia que não conseguia mesmo decorar nada. Foi nessa hora que D. Júlia interrompeu: – “ Eu posso falar logo meu poema porque eu tenho aula de alongamento às 6h.?” D. Júlia com sua pergunta era um tapa na cara de todo mundo. Havia decorado o texto que recebera no dia anterior como todos, e mais que isso, sabia-o. Entregava-se a ele com emoção, com maturidade e com garra juvenil. Aproveitava o poema. Eu disse à Clarice: – “tente”. Ela subiu ao palco e com um papelzinho na mão, a cada dificuldade, colava. Nem tentava lembrar. – “Tá vendo como eu não consigo?” “Sua memória, menina, é uma mulher gorda sentada diante da televisão o dia inteiro, comendo um balde de brigadeiros. Você não dá trabalho a ela. Você não formata a sua memória. A primeira dificuldade, é resolvida com uma olhadela rápida no papel e sua memória fica sedentária, não caminha, não se exercita, não se move.”
Esse dia provou a todos como pode a idade ser cada vez menos usada como desculpa. D. Júlia é um daqueles espelhos do futuro que nos aparece como verdadeiras aulas independentes no meio do processo. Se eu pudesse, inventaria Júlia, mas ela existiu, existe, não preciso inventá-la e graças a Deus não é a única. No dia do recital, todos estavam mudados, brilhantes, corajosos, mas só D. Júlia foi aplaudida de pé.