Essa é a primeira na história do Brasil que eu vejo tapete vermelho, honrarias, primeira classe e respeito oferecidos a um homem do povo. É a primeira vez que um “Silva”, pernambucano, nordestino, de passado pobre, é tratado como distinto cidadão. Só esse fato em si pode fazer uma faxina no inconsciente da identidade brasileira.
O brasileiro é o povo mais liberal e mais preconceituoso do mundo ao mesmo tempo. Explico: o mesmo povo que emerge de um caldeirão étnico diversificadíssimo, caldeirão este que faz dele um povo maleável, acostumado a adaptabilidades, variadas idiossincrasias e climas, esse mesmo povo, quando se olha no espelho oficial, não vê essa diversidade. A face refletida no espelho brasileiro tem sempre um aspecto de Xuxa, uma burguesia clássica, uma ilusão de que só brancos de origem européia são cidadãos de primeira classe. Percebo muito isso nos aviões. As pessoas que voam na primeira classe realmente acreditam que são cidadãos de primeira classe e que todos os da classe econômica são de segunda classe. Uma vez viajei na primeira classe, porque aconteceu um overbook e eu tinha um compromisso inadiável fora do país; pressionei a companhia aérea e eles não tiveram outra saída.
Resultado: eu era a única negra na primeira classe e, sem que ninguém suspeitasse, portava três quilos de carne seca na bagagem de mão – encomenda que levava para uma amiga brasileira que passava por crises de abstinência de feijoada. Minha bagagem passou clandestina contrastada com caviar e champanhe que me ofereciam. Eu considerava aquela muamba como uma espécie de subversão. Toda vez que me serviam eu sorria por essa íntima diversão, mas, aos olhos do comissário de bordo, meu sorriso era por pura simpatia.
Ora, meus irmãos, não existem cidadãos de segunda classe! Todos somos de primeira classe enquanto seres humanos. Dependendo do estrago que possamos fazer durante a vida nos nossos valores éticos e morais é que podemos ir mudando de classe. Espero poder comprovar cientificamente o que digo, pois há ainda os que acreditam que, em caso de queda da aeronave, a primeira classe não cai (ha, ha, ha…).
Essas pequenezas regem nosso comportamento social, fazem com que a gente despreze quem não tem sobrenome importante, “quem tem pé na cozinha”, quem não pode ir a uma faculdade, quem não é branco, quem tem cabelo crespo, quem não é loura, quem não faz escova ou alisamento japonês, quem é pobre, quem trabalha, faz com que a gente despreze uma grande parte do verdadeiro desenho da cara do povo brasileiro. Zeca Baleiro me disse uma vez que, no caso do Brasil, isso ainda é compreensível porque como é um país adolescente tem direito à crise de identidade. Nesse sentido, Lula vem em boníssima hora. Hora de mostrar a esse jovem país que seu povo pode ser respeitado, amado, considerado. O Lula é um emblema de vitória. Um cara que frustrou as estatísticas e as previsões óbvias para um retirante. Como um guerreiro e sem talvez nem conhecer esse verso do Paulo Leminsky, o viveu explicitamente: “Não sabendo que era impossível, foi lá e fez”. Vencedor, esse guerreiro não se atemoriza diante das intempéries e preconceitos. Aprendeu na estrada e, obstinado, desconsiderou e mais que isso, desobedeceu à ordem social de que povo não pode chegar ao poder. Aí é que esse homem, cujos eleitores emocionados o coroam como líder e irmão, compõe agora a carnadura da nossa esperança. Lula entende bem o exercício dela e, a sociedade como um todo, ricos e pobres, burgueses e operários, parece estar entendendo que a ação de cada um fortalece a musculatura dessa esperança.
É a primeira vez que vejo um “Silva” com pé na cozinha, brasileiro, “paraíba”, sendo tratado como cidadão de primeira classe.