A guerra no Iraque vai perdendo força no noticiário, embora a suspeita de que o pior esteja por vir com a resistência à ocupação americana e conflitos entre as etnias do país. A repetição sistemática de atrocidades na mídia, passada a indignação inicial, vai ao ponto de nos entorpecer, entediar e derrubar os índices de audiência. Em pouco tempo, é de se prever, o assunto já estará relegado às páginas internas de jornais e revistas, prestando-se mais a enrolar peixes do que a provocar sentimentos e reflexões.
Esse esquecimento, ou resignação, que nos é imposta pela idéia de que nada do que fizermos mudará o rumo das coisas, está certamente entre as contas do Departamento de Estado dos EUA. Se algo há de peculiar nessa guerra, é a desfaçatez com que foram ignorados todos os apelos de nações, movimentos civis e de parte do seu próprio povo para que ela não viesse a acontecer. Com uma inédita e brutal supremacia bélica sobre o resto do mundo e a singela filosofia de que a linguagem das armas é a única que importa, estão seguramente convictos de que a humanidade pode espernear o quanto quiser, mas cedo ou tarde há de se submeter e se deprimir perante a sua patologia hegemônica.
E o pior, o grande desastre, é que estão errados. Aquilo, que aí se deprime, não morre. Aquilo, que se suprime, não evapora. Ao contrário, cozinha em fogo lento à espera da primeira chance para derramar sua fervura de ódio sobre a cabeça do opressor. Vide o 11 de setembro. E tome cadáveres, de lá e de cá, em cada volta dessa espiral da insensatez. Mas, afinal, há algum caminho diferente que se possa tomar além de alimentar em silêncio essa revolta ou de responder com violência à brutalidade?
Fui cético, de início, sobre o apelo que circula hoje pelo mundo de boicote a marcas americanas como a Coca-cola e o McDonald’s. Não me parecia uma estratégia séria, vamos ter que boicotar muito mais coisas, pensei – e não estava disposto a jogar metade dos meus CDs no lixo. Mas pode-se ler essa proposição não pelo resultado econômico que viesse a ter, ou pelo disparate de alguém trocar as fraldas Pampers pelos paninhos da vovó. Talvez ela aponte o caminho de uma reação no plano do simbólico, mais do que dos objetos em si.
Um bigmac é bem mais que um sanduíche (bom ou ruim, você decide), é uma transmissão de cultura que me diz “de forma padronizada podemos comer sem desperdiçar tempo”. Tempo para quê? Tempo para produzir mais objetos de prazer padronizados. Uma Coca-cola sussurra “ligue-se na realidade, a vida não é pra trouxas que ficam meditando”. Para perdedores. O looser, uma ofensa tipicamente americana, na qual está embutida a idéia de que ganhar de forma suja é melhor do que perder.
Estas e outras obsessões do American Way of Life (ou Death, dependendo de se estar dentro ou na frente do tanque) são o amálgama que sustenta o conservadorismo americano e todos os Bushes já criados e por criar. E o quanto já não nos deixamos contaminar por esse modo de (dis)pensar a vida, reféns da pressa, da produção, de prazeres tecnológicos? Talvez cada um possa começar por si mesmo a reconhecer e boicotar valores intrometidos e introjetados em nossos relacionamentos, em nossa linguagem, em nossas posturas com relação ao trabalho, ao amor, à vida. E bombardeá-los intensamente, inteligentemente, com palavras. Ainda que – com toda a calma – se esteja a mastigar um bigmac.