O pintor Glauco Rodrigues era de Bagé, interior do Rio Grande do Sul, perto do Uruguai. Morava no Rio desde 1948, com um intervalo de três anos em Roma a partir de 62. De vez em quando, voltava a pintar as tranqüilas paisagens da fronteira gaúcha e cenas dos campos de Bagé, no local ou de memória, e eram breves recreios pastorais da sua produção principal, que não podia ser mais cosmopolita. Mas também era uma maneira de Glauco reiterar sua condição de estrangeiro no desvario carioca e na colorida opulência brasileira, que ele retratava como ninguém, mas com um olho de quem não era bem dali, um olho bajeense e não-tropical. O próprio rigor técnico da pintura de Glauco era uma forma de não se entregar à loucura, por mais surrealistas que fossem suas alegorias, e de manter um certo recato gaúcho diante do Brasil.
Quando voltou de Roma, onde experimentou o abstracionismo, Glauco encontrou o país em plena ditadura e usou o distanciamento crítico como uma forma de retratá-lo. Comentei esta fase num livro da Salamandra sobre a obra do Glauco, que foi publicado em 1989. Sua volta ao figurativo coincidiu com sua volta ao Brasil. Ele reencontrou o figurativo e encarou o Brasil pós-64 através da metáfora, que é a arte do distanciamento. A metáfora era uma imposição das restrições da época, quando era preciso cuidar a maneira como se dizia as coisas, mas era também um olho estrangeiro posto sobre os descaminhos da república. Quando se podia escrever pouco sobre a insensatez dominante, Glauco a colocou em seus quadros. Nossa vocação autofágica reafirmada e ao mesmo tempo satirizada, com citações de quadros antigos e a evocação de toda uma memória gráfica nacional. Nosso passado e nosso presente juntos sob o mesmo olhar definidor. A convivência de brasis irreconciliáveis, PMs circulando entre os índios e pelas praias do Rio, todos sob a mesma luz, antes de Cabral.
Ninguém, como o Glauco, pintava a luz brasileira, o modo como ela fica difusa e branca na praia, a alta definição que proporciona às cenas da nossa loucura, ou ilumina os contornos de mulheres e frutas. Mas o olho preza a sua independência crítica acima de todos os prazeres do abandono. Não se entrega à luxúria brasileira, prefere a lucidez à luz. Afinal, a luz é culpada por grande parte do que somos. É a luz do paraíso, e aqui não é o paraíso.
Depois desta, vieram outras épocas. Há os famosos retratos que fizeram sua reputação maior. As gravuras, as serigrafias, as moldagens em acrílico. Já se pode escolher uma época favorita de Glauco. Ele morreu na semana passada. Sua obra agora está completa.