OPINIÃO

As memórias de Alexandre

Publicado em 22 de julho de 2004

Ofuscado pela exagerada homenagem prestada aos sessenta anos desse compositor obscuro de nome Chico Buarque, um episódio vital para o país passou-se quase em segredo. Dele só me tornei ciente porque, zapeando ao léu na TV, dei de cair por instantes em um programa de auditório. E eis que ali se apresentava, com seus tríceps e dragões tatuados, o grande Alexandre Frota, mítico imperador de todos os hunos tropicais celebrizados, excelso soberano do novo sexfunk do subúrbio, Jeová em pessoa – e inacreditavelmente Ele hesitava em responder a uma pergunta do apresentador. Ora, por Tutatis, balbuciei estupefato, que pergunta poderia ser essa? Que espécie de dúvida atravessaria toda a extensão reflexiva de tal ser sem receber de imediato, em retorno, o apontar do caminho e da verdade para os súditos?

“Com quantas mulheres você já esteve?” – ainda bem o apresentador repetiu, e aí compreendi que não se tratava propriamente de uma dificuldade de ponderação ou falta de conhecimento. Apenas estava, o Grande Alexandre, a contabilizar uma eternidade de cópulas, festins, concúbitos e similares que, convenhamos, não se encontraria mortal que as inventariasse com maior presteza. Suspensa no ar, tal como a respiração da platéia, a resposta tomou ares de oriental sabedoria antes de revelar-se também na forma de um questionamento: “Sei lá… umas setecentas, talvez?”

Então, “Óóóóó…”, deixou-se exclamar a platéia, e não se distinguiria nesse clamor júbilo ou desprezo, de fato. Compreendi de imediato que, fosse a cifra algumas centenas mais modesta ou um milhar mais abrangente, produziria a mesma reação. O choque, o espanto, a comoção se davam apenas pela inexatidão da resposta, percebem? Se Ele houvesse dito “até este momento, 698” ou mesmo “estou em dúvida entre 704 e 705, por conta de umas siamesas”, tudo estaria bem. Mas o que resta de esperança, qual zênite de fé mirar quando a memória de Deus já não consegue abarcar cada ovelha de seu rebanho? Ou, posto de outra forma: imagine-se que diacho de futuro celebrará um dia, sem o Chico, a velhice do Alexandre Frota, este que já não acerta sequer a conta daquilo que o outro canta, puxa vida, como ninguém.

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