Um minuto para a meia-noite. Todos na festa têm os relógios sincronizados, as champanhes estão de prontidão e o CD da Ivete Sangalo no pause, aguardando a contagem regressiva. Súbito, ouve-se o toque da campainha. Alguém grita “agora não dá, volta o ano que vem!”, mas um outro resolve arriscar e corre para abrir a porta. Quem surge, ou melhor, quem invade a casa com um odor de bode embalsamado é um velho de longos cabelos grisalhos e barba enroscada, descalço e com o corpo coberto por uma túnica em frangalhos. Sem ligar para o pasmo dos presentes, ele cruza a sala distribuindo cumprimentos antes de aboletar-se numa poltrona junto com a garrafa de champanhe e o prato de salgadinhos que arrebanhara no trajeto. Já ninguém mais se lembra de olhar o relógio, e o constrangimento é tal que obriga o visitante a uma apresentação.
– Que é isso, gente, não tão reconhecendo um velho ano de vocês? Tá aqui na faixa – diz, apontando uma tira esfarrapada que lhe pendia do ombro – dois-mil-e-quatro, percebeu? Mas não se acanhem por minha causa, só estava passando, literalmente, por aqui, e resolvi dar uma chegadinha. Afinal, sou ou não sou o motivo dessa festa?
Murmúrios variados, até que alguém toma a palavra para contestar.
– O motivo da festa é o 2005, e não você. Que, aliás, não deveria mais existir, já que a meia-noite passou enquanto nos ocupávamos com a sua beleza.
– Ôpa, ôpa, não se esqueça do horário de verão, meu chapa. E o 2005, ora, aquele bebê vai chegar chorando e de fralda molhada, quero ver quem larga a festa pra cuidar dele. Além do mais, não creio que eu possa ser dispensado assim tão rápido quanto gostariam. Você, por exemplo, vai continuar pagando todas as dívidas que contraiu em mim, a prestação do carro, os presentes da amante…
Um “óóó” de indignada surpresa – ou nem tanto – percorre a sala, mas o velho segue falando, imperturbável.
– …assim como aquele outro cidadão ali ainda vai ter muito o que explicar sobre o meu balanço da firma dele, e a senhora dona da casa, com todo o respeito, vai precisar de uma lipoaspiração pra se livrar dos pneuzinhos que ganhou em mim, isso que, na minha virada, tinha feito a promessa de não comer mais pudim de leite.
Os convivas estavam todos em torno dele e, ainda que tocados com a verve e a sinceridade do velho, o silêncio denunciava que algo fora do lugar precisava de um reparo urgente, e foi assim que alguém mansamente deixou escapar a palavra “tranca”.
– Como é que é?
– Tranca o infeliz na despensa. E solta a Ivete Sangalo do pause.
E assim foi feito, para o bem geral. Devidamente amarrado e com uma fita scotch atravessada de uma orelha a outra, o velho não tinha mais como perturbar a festa. E, convenhamos, isso não é mesmo hora para revelações e exames de consciência, quem quiser contar algo de novo que conte dez, nove, oito, sete, seis, cinco…