Passei o resto das horas muito feliz pensando na minha ex-tristeza chata.
Comparada à paz de agora, minha intuição de antes era uma nítida insegurança, uma impropriedade, uma bobagem mesmo. Resolvi tomar banho, mas ao tirar a roupa subiu-me um cheiro tão maravilhoso do amor nosso muito bem feito, que achei que seria profano lavar-me. Lavar o quê? Meu corpo estava limpo já, de paixão. Deitei na cama solta, confiante, afundando o colchão com a preguiça do corpo; eta saudade boa, eta ócio bom; ê vidão!
Estendi o indicador para pressionar o botão do som, mas esbarrei no violão. Caiu barulhento, o coitado. Errei (ai, os alvos, meus Deus, os alvos!). Agora o botão certo e a fita cassete. Tocava Ravel, o Bolero ao fundo: “Luzia… (a fita era cheia de silêncios Raimundescos. Raimundo era o homem que me ensinara que silêncio, cada um tem o seu. Respeitei)… Luzia eu vou com a Mendes Júnior para o Iraque; aquela mesma lida, meu bem, petróleo, perfuração, mas… desta vez… Iraque. Não vou voltar. De lá sigo pelo Golfo em golfadas fundas de saudade de você por muito tempo. Sinto que meu caminho é outro e de outra maneira. Você é muito sublime e nem sei se tenho direito à sua árvore. Luzia, pelo amor de Deus, acredite que te deixo louco de amor. Te deixo por não querer um dia te tratar mal; por não suportar a idéia de um dia vir a te cobrar demais, a te exigir demais na teia do cotidiano. Mas nunca pense que tomei essa decisão pelo fato de você ser cega. Você está… proibida de concluir assim. Sua cegueira na verdade só te transforma, pra mim, numa criança linda a quem guiar e, que ao mesmo tempo, com sua vidência, tantas vezes me guiou. Saudades eternas do seu tato amoroso e… farejante… Nunca vi alma com olhos tão reluzentes e sagazes. Tô indo meu amor. A essa hora já parti”.
Fiquei como morta na cama. Meu ouvido fazia um zumbido de abelha perdida. Nunca mais ia querer levantar, pensei. Nunca mais. Ele tinha razão. Como poderia eu, cega guiar os filhos que teríamos? A Marieta, a Sofia, o Urano, filhos escolhidos dos nossos sonhos… Como poderia eu guiá-los, meu Deus? Pra onde? Depois que se dá à luz é que se começa a dar a luz. Eu não poderia levá-los ao parque e dizer cuidado!… Não poderia proteger a cria. Um dia Raimundo com certeza não iria agüentar mesmo. Iria sobrecarregá-lo; ter em casa uma humanidade pra cuidar…
Meu corpo morreu. A mão pensou em pegar o violão, mas desistiu antes de ir. Era incapaz de qualquer gesto. Tudo perdera motivo, sentido. Tudo perdera sua possibilidade de festa.
Inútil gastar gesto.
Quando acaba a fita a voz do rádio automaticamente invade o som da casa:
“ Hoje é dia de Santa Luzia, treze de dezembro. Aí vai, caros ouvintes, uma simpatia milagrosa para os que desejam ver melhor, para os que foram privados da luz dos olhos… Anotem aí a simpatia… Hoje é dia de Santa Luzia”.
Lembrei-me da promessa que minha mãe fizera e pagara metade pondo-me esse nome, na esperança que a Santa se apiedasse de mim. Logo na maternidade descobriu a falta desse mudo sentido. E uma parte da promessa, segundo minha mãe, era tarefa minha: ir durante toda minha vida às quartas e quintas à missa na igreja dela. Dois olhos, duas missas.
Santa Luzia é uma espécie de Iansã com Oxum; na quarta vestido vermelho, na quinta amarelo. Chegou a me levar muitas vezes, minha mãe. Depois ela morreu e eu me esqueci. Com ela acho que foi minha fé. Ou era fé só dela, não sei.
Mas ao dormir meu espírito decidira, antes de mim, rezar a reza simpática que o rádio dizia, embora meu coração fosse só perfuração; embora nos meus olhos, só petróleo. Denso caldo, densa lágrima sem fim.
“Oh minha Santa Luzia, dá-me o sol como guia / faróis que iluminem a estrada a seguir / oh minha Santa Luzia, / transforme a escuridão de minha jornada / na firme espada a luzir.”
Dormi desmaiando, rezando a repetição daquela súplica.