OPINIÃO

Um eterno século 18

Publicado em 4 de outubro de 2005

Eric Hobsbawm escreveu sobre o “pequeno século 20”, que durou, para ele, do início da Primeira Grande Guerra a pouco depois do fim da Segunda (do desmoronamento do mundo do século 19 ao fim do colonialismo europeu e começo da hegemonia americana, passando pelas bombas atômicas) e em que as mudanças foram tão radicais que tornaram o resto do século supérfluo. Concentrando-se no Brasil, Hobsbawm poderia adotar uma visão mais vagarosa da História e montar um argumento contrário, sobre um “longo século 18”, em que as coisas não mudam. Aqui, pelo que se ouve, o século 18 atravessou o século 19 e invadiu o século 20 com todos os seus conceitos e preconceitos intactos, e, embora ninguém mais use perucas empoadas, o medo do povo continua igual ao que era antes da revolução republicana. Então chamavam os pobres de “a classe perigosa”, hoje usam eufemismos que significam a mesma coisa, e o mesmo terror. Só quem viveu antes da Revolução conhece as delícias da vida, disse um saudoso da ordem pré-republicana. O entusiasmo com que a direita brasileira aproveita o vexame petista para pregar e promover o fim da raça da esquerda deve-se à nostalgia, entre alguns, dessa delícia perdida: uma sociedade com os pobres resignados e uma aristocracia segura do seu direito divino e exclusivo ao poder. Um eterno século 18.

As evocações que têm sido feitas do Juscelino, por Lula e outros, lembram um dos paradoxos brasileiros, entre muitos. Juscelino hoje é citado como o melhor presidente que o Brasil já teve, um sucesso unânime. Mas como conciliar seu sucesso indiscutível com o fato de seu sucessor ter sido eleito, com grande maioria, com uma plataforma anticorrupção, prometendo varrer a sujeira do seu governo? Na medida em que a eleição de Jânio Quadros foi um julgamento de Juscelino, este teve da História um veredito mais favorável do que o das urnas, que na época deram mais importância à corrupção do que ao desenvolvimentismo e ao carisma pessoal de JK. Anos depois, Collor foi eleito como “caçador de marajás”, com a promessa de acabar com a suprema imoralidade de alguém ganhar demais num país em que a maioria ganha quase nada. Foi deposto quando descobriram que, além de um mau caçador de marajás, ele mesmo era um marajá secreto. Lula foi, ironicamente, o primeiro presidente brasileiro na nossa história recente a não se eleger para acabar com a corrupção acima de tudo, embora uma ética superior à dos outros estivesse implícita na mensagem do PT. Se cair, será pela corrupção. Ele será mais uma vítima do grande paradoxo nacional: na terra do dá-se um jeitinho, do malandro herói e das maracutaias oceânicas, o moralismo é que tem determinado a história política. Lula só pode desejar que a História continue sendo esquecida e o trate tão bem quanto tratou o Juscelino.

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