O livro Em busca da política (Jorge Zahar Editor), do sociólogo polonês Zigmunt Bauman, deveria ser lido por todos aqueles que estão preocupados com os rumos da política, especialmente neste momento em que a proposta da Reforma Política está em debate. Nos últimos anos, diversas pesquisas registraram um crescente descrédito da população em relação à política e aos políticos de um modo geral. Prospera uma visão que coloca a classe política e a atividade política em uma esfera de desconfiança e perda de legitimidade. A tentação de jogar todos os partidos em uma mesma vala comum de oportunistas e aproveitadores representa um perigo para a sobrevivência da própria idéia de democracia. O que explica esse fenômeno que se reproduz em vários países? A política e os políticos estão, de fato, fadados a mergulhar em um poço sem fundo de desconfiança? Bauman analisa algumas crenças contraditórias que perpassam boa parte da sociedade ocidental. Ele destaca duas delas para tentar lançar uma nova luz sobre a perda de legitimidade que atinge a política. A primeira consiste em afirmar que a questão da liberdade está resolvida no mundo ocidental e que não há mais necessidade de ir para as ruas protestar e exigir uma liberdade maior do que a que experimentamos hoje. A segunda é pensar que, considerando a atual configuração política e econômica do mundo, pouco podemos mudar e, portanto, devemos nos contentar com as coisas mais ou menos do modo que elas estão. “Como cultivar essas duas crenças ao mesmo tempo é um mistério para qualquer pessoa treinada no raciocínio lógico”, assinala.
Liberdade individual e impotência coletiva
A final de contas, acrescenta, “se a liberdade foi conquistada, como explicar que entre os louros da vitória não esteja a capacidade humana de imaginar um mundo melhor e de fazer algo para concretizá-lo?”. “E que liberdade é essa que desestimula a imaginação e tolera a impotência das pessoas livres em questões que dizem respeito a todos?”. O livro de Bauman pretende investigar por que essas duas crenças contraditórias convivem hoje, compondo uma espécie de pensamento hegemônico na sociedade. A conclusão dele é a de que “o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública e privada são destruídas ou, para começar, nem foram construídas”.
Não é muito difícil detectar esses fenômenos na sociedade brasileira. O sentimento de impotência coletiva, a idéia de que certos problemas não têm solução e que o negócio é cada um cuidar da sua vida, o afastamento entre as esferas pública e privada. O debate sobre a corrupção é emblemático. O senso comum olha a atual paisagem política como quem olha para uma floresta onde todas as árvores são iguais. Mais grave ainda: essas árvores teriam um comportamento parasitário, cada uma procurando acumular vantagens individuais sem se preocupar com o bem-estar coletivo da floresta. Obviamente, reconhecer a força dessas percepções no conjunto da sociedade implica admitir a existência de evidências na sua direção. O fisiologismo político, as práticas do toma-lá-dá-cá, a falta de coerência entre o dizer e o fazer estão aí a povoar todos os dias os noticiários.
As explosões espetaculares: diagnósticos e soluções
Neste cenário, diz ainda Bauman, as angústias coletivas tendem a se manifestar apenas em alguns momentos particulares, sob a forma do que chama de “explosões espetaculares”. Essas explosões podem se manifestar na forma de festivais de compaixão e caridade, como ocorre freqüentemente com grandes campanhas assistencialistas promovidas por grandes meios de comunicação, capazes de mobilizar virtualmente milhões de pessoas. E ocorrem também sob a forma de agressão acumulada contra um inimigo público recém-descoberto. Alguns personagens são identificados como os vilões da pátria e transformados em alvos para uma catarse coletiva. O problema com essas explosões espetaculares, adverte, é que “elas perdem força rapidamente, assim que voltamos às questões rotineiras do nosso dia-a-dia”.
O que fazer, diante disso? Bauman aponta um caminho: “a chance para mudar isso depende da ‘ágora’ – esse espaço nem privado nem público, porém mais precisamente público e privado ao mesmo tempo”. Um espaço, segundo ele, onde os problemas particulares se encontram não apenas para extrair prazeres narcisistas ou buscar alguma terapia através da exibição pública. O problema: esse tipo de espaço está deixando de existir. Poderosas forças econômicas, aponta, “conspiram com a apatia política para recusar alvarás de construção para novos espaços”.
O problema com a nossa civilização, acrescenta, é que ela parou de se questionar. “Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que essa arte caia em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas que a afligem”. E o caminho para reverter esse quadro passa necessariamente pela política com “P” maiúsculo. O ponto central de seu livro é que “a liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo, só pode ser assegurada e garantida coletivamente”. Neste momento, adverte, estamos caminhando exatamente no sentido contrário, ou seja, no caminho da privatização dos meios de assegurar algo que possamos chamar de liberdade individual.
Sobre o Acervo da Luta Contra a Ditadura
Recebi correspondência da professora Rejane Penna, protestando contra a nota publicada neste espaço tratando do Acervo da Luta Contra a Ditadura. “Acostumada a freqüentar o espaço do Acervo, sei que jamais foi cogitado desmembrá-lo ou destruí-lo”, escreve, classificando a nota como “leviana e sensacionalista”. A nota publicada aqui, na verdade, não foi a primeira a falar sobre a situação do Acervo. No dia 25 de fevereiro, Zero Hora publicou matéria sobre o tema. No dia 26 de maio, no mesmo jornal, o então responsável pelo Acervo, João Carlos Bona Garcia, anunciou seu pedido de demissão por discordar da gestão em relação ao mesmo. A nota não foi movida por nenhuma intenção sensacionalista. Se não paira ameaça sobre o acervo, melhor para a memória do Estado.