O poliglota, além da língua materna, era fluente em mais 16. Arranhava outras 5, machucava 2 e massacrava 3. E ainda se saía bem em 9 dialetos e se dava mal em 4. Quer dizer, poliglotava em 40 versões. Cordial em português, filosofava em alemão, brigava em italiano, se metia a conquistador em francês, fazia marketing em inglês. Isto é, clichechava no idioma que bem entendia.
Através dos anos e estudos, o poliglota acumulou um arquivão no cérebro. Lá estavam, faiscantes na cachola, em sinapses de cruzamentos instantâneos, dezenas de dicionários, enciclopédias dos quatro cantos do mundo, gramáticas clássicas e modernas, livros de citações em idiomas inacessíveis a poliglotas menos poliglotados que ele. Um fenômeno difícil de levar na conversa, impossível de tergiversar com o cara.
Até que um AVC se formou logo atrás da testa lá nele.
Na verdade, a sigla tinha sentido específico pro poliglota. Era um Acidente Vocabular de Conversação. Um minúsculo aneurisma idiomático, coágulo monossilábico em sabe-se lá que língua. Só se sabe que travou toda sua imensa torrente cerebral de palavras. Um crânio entupido por um fonema antigüissimo? Novíssimo neologismo da globalização verbal a bloquear a circulação oral? Uma locução arcaica truncando pronúncias hodiernas? Nada disso ou tudo isso?
O poliglota nunca mais foi o mesmo. Sua verve se tornou confusa nas infinitas permutações das encruzilhadas orais. Começou a misturar eólicos com bucólicos.
Dizia que em restaurante japonês tinha-se que respeitar o ritual. Comer o tai chi chuan de legumes com os haraquiris e só beber o riquixá depois do caramelar o camicase.
Informava que, na Bahia, dendê é quando a criancinha não quer dandá. Que atabaque é um ataque de babacas aos nuaruaques de araque. E que a diferença entre babaçu e cupuaçu é que um dá em açude cheio e o outro em açude seco.
E assim enveredou por um enredo sem-fim. Que destranquem é arrombamento em alemão. Envídia são as sardinhas argentinas.
Que pastiche é um fetiche de hebreus recheado de aliche. E almirantado, o posto mais alto de um minarete muçulmano. Em literatura russa, adorava textos parvos e turvos.
Aí foi piorando. Gabava-se de usar tênis nikebana. Que só praticava judô sobre pastrame. Os muares eram aquelas espátulas nababescas na Filha da Páscoa. Que gleba era um greta glabra da Grécia.
Morreu de pluripoliglotismo. Um nó na glote.