OPINIÃO

Um caldo de cultura perigoso

Publicado em 17 de agosto de 2007

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Arte de Claudete Sieber

Arte de Claudete Sieber

Há um caldo de cultura perigoso formando-se no ambiente político brasileiro. A crise aérea e a tragédia de Congonhas atingiram em cheio o governo Lula, que não vem conseguindo resolver os graves problemas que se materializaram nos aeroportos brasileiros. A contaminação política desses episódios era mais do que esperada. E vem crescendo como uma bola de neve, despertando, inclusive, saudosos do regime militar. Contribui para isso a crise de legitimidade que atinge os parlamentos e os políticos de um modo geral. Na mídia, é visível a elevação de tom nas críticas. No dia 24 de julho, editoriais e colunistas de vários jornais do país ilustraram esse fenômeno, falando em “colapso do lulismo”, “corriola governamental” e incapacidade de governar o país. O editorial do jornal O Estado de São Paulo falou em “governo desacreditado” e “colapso do lulismo em matéria de permitir, em última análise, que o país funcione”. O Estadão referiu-se ainda ao presidente da República como “o inexperiente Lula, o qual na irrefutável constatação de Orestes Quércia, em 1994, nunca dirigiu nem um carrinho de pipoca, antes de ambicionar o Planalto”. Na mesma direção, o colunista Clóvis Rossi perguntou na Folha de São Paulo: “se o país é incapaz de segurar um avião na pista, vai segurar o quê?”. O jornal O Globo, também em editorial, disse que “a crise é mais profunda do que se quer fazer crer”. No Globo, Dora Kramer afirmou que “à corriola governamental tudo é permitido: agredir o público com grosseria, com leviandade, com futilidades, com fugas patéticas ao cumprimento dos deveres, com indiferença, vale qualquer coisa se a anarquia tem origem nas hostes governistas”. “Corriola”, em seu uso informal, significa “grupo de pessoas que agem desonestamente ou de forma inescrupulosa; quadrilha”.

Saudades da ditadura

Se o país está entregue a uma “corriola”, como disse Dora Kramer, o que esperar? O juiz do Superior Tribunal Militar (STM), Olympio Pereira da Silva Junior, sugeriu, durante um discurso para alunos do Exército, Marinha e Aeronáutica, um movimento cívico dos “homens de bem”, “similar ao que ocorreu em um passado não muito longe”. Ele afirmou:

“O que podemos dizer a esses ilustres jovens militares. Não desistam. Os certos não devem mudar, e sim os errados. Podem ter certeza de que milhares de pessoas estão do lado de vocês. Um dia, não se sabe quando, mas com certeza esse dia já esteve mais longe, as pessoas de bem desse País vão se pronunciar, vão se apresentar, como já fizeram em um passado não muito longe, e aí sim, as coisas vão mudar, o sol da democracia e da Justiça brasileira vai voltar a brilhar”.

O ministro Olympio Junior criticou a situação política do país e fez uma apologia da honra, da moral e do patriotismo, lamentando que os jovens cadetes não poderão manusear os instrumentos militares que conhecerão no treinamento:

“Aqueles jovens, ainda puros, não sabem que vão estudar (e como vão estudar, durante toda a carreira) tudo sobre a arte da guerra e do combate e vão conhecer e aprender tudo sobre equipamentos e instrumentos militares, os mais modernos do mundo, mas que na realidade nunca irão manusear porque, no nosso País, não se acredita ser necessário a compra de armamento/equipamento militar para ficarmos em igualdade bélica a outras nações”.

Trata-se, obviamente, de uma afirmação isolada de um ministro do STM. Mas não deixa de ser alarmante que uma autoridade da República manifeste, em 2007, nostalgia do regime militar e de suas práticas, sem ser contestado.

Ambiente de radicalização

Em um artigo intitulado “Antes de entrar num coro, olhe em volta”, Luis Fernando Veríssimo escreveu: “(…)antes de participar de um coro, veja quem estará do seu lado. No Brasil do Lula, é grande a tentação de entrar no coro que vaia o presidente. Ao seu lado no coro poderá estar alguém que pensa como você, que também acha que Lula ainda não fez o que precisa fazer e que há muita mutreta a ser explicada e muita coisa a ser vaiada. Mas olhe os outros. Veja onde você está metido, com quem está fazendo coro, de quem está sendo cúmplice. A companhia do que há de mais preconceituoso e reacionário no país inibe qualquer crítica ao Lula, mesmo as que ele merece. Enfim: antes de entrar num coro, olhe em volta”.

Foi chamado de “modelo de moralidade lulista” por Diogo Mainardi, na revista Veja, e de “intelectual de miolo mole” por Reinaldo Azevedo, também da Veja. O país pode estar caminhando para um clima de radicalização política não visto há muito tempo. O festival de especulações e produção de hipóteses sobre as possíveis causas do acidente com o avião da TAM em Congonhas é retro-alimentado por essa radicalização. A inesgotável dor e o sofrimento dos parentes, amigos e amigas das vítimas viraram uma lamentável moeda de troca neste processo. A transformação da dor humana em espetáculo midiático foi naturalizada e incluída na categoria de interesse público.

Há quem ache que, no início do século 21, a política tornou-se algo irrelevante. A crescente radicalização de ânimos e de palavras no país e os interesses que a alimentam parecem indicar o contrário.

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