O retorno de velhos fantasmas na Argentina
O dilatado conflito entre os dirigentes agrários e o governo de Cristina Kirchner, que se desenvolveu em um cenário onde predominam a irracionalidade, os ritos folclóricos e a desmedida, obscurece a revisão a fundo dos grandes dilemas políticos, econômicos e sociais que desafiam a Argentina. E, mais grave ainda, prejudica o aproveitamento pleno da imensa capacidade exportadora de alimentos do país e o fomento de seu desenvolvimento industrial, em um contexto mundial marcado por uma tripla crise. Um final de época no qual repetir erros pode conduzir a uma outra frustração histórica. A análise de Carlos Gabetta, diretor da edição argentina do Le Monde Diplomatique, traz uma grave advertência sobre a evolução da situação política no país: os genes autodestrutivos nacionais estão em plena ebulição.
Dois enigmas: o sucesso do Japão
e o fracasso da Argentina
Gabetta cita uma piada que circula entre economistas e sociólogos internacionais sobre a evolução histórica dos países: todos os casos são compreensíveis e explicáveis, menos o êxito do Japão e o fracasso da Argentina. O caso do Japão, corrige ele, ao menos no período do pós-guerra, se explica por racionalidade, trabalho, pesquisa, perseverança e institucionalidade. Já no caso da Argentina, desde que a elite do país e o conjunto da sociedade abandonaram, por volta de 1930, sua vocação universalista, trocando-a por decálogos de filósofos de província (no melhor dos casos), ou pelas botas e armas dos militares (no pior), a decadência e o caos foram se instalando no país de maneira progressiva. Desde lá, as enormes potencialidades do país sempre acabam por esbarrar em violentas rupturas políticas e crises institucionais.
Na crise de 2001, observa Gabetta, derrubou-se um modelo econômico. O que se vê agora, porém, no conflito entre o governo e o setor rural, parece apontar para o esgotamento de um modo de atuar e de entender a política. O tema mais relevante do conflito acabou soterrado: aproveitar uma conjuntura favorável para o país, vencer a resistência à tributação dos setores mais rentáveis e utilizar esses recursos para o desenvolvimento e o combate à desigualdade. Gabetta dá alguns exemplos do clima de “paranóia, excitação e desmedida” que ajudou a soterrar esse debate: o chefe de gabinete do governo que chamou de “nazistas” os opositores; o líder ruralista De Angelis que fez uma advertência sobre “luta armada”; a líder das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, que defendeu a repressão aos grevistas; o grupo de intelectuais que advertiu para o risco de um “golpe de Estado”.
Os debates interditados
Para o diretor do Diplô argentino, essas advertências não encontraram eco na realidade. “Qualquer um sabe que, neste momento, não há a menor possibilidade de golpe. E quanto à ameaça de desestabilização, só pode ser desestabilizado um governo fraco em uma situação verdadeiramente grave. Foi o caso do governo radical em 1989 e da Aliança em 2001”. O peronismo, acrescenta, que entende de desestabilização, por a ter sofrido e praticado durante meio século, faria melhor se prestasse atenção nas causas do movimento que dividiu o país. O conflito, conclui, possui inegáveis interesses de classe, mas eles não apareceram no debate. Tanto o governo como os ruralistas ficaram surdos a temas como a demanda por uma reforma tributária progressiva, a concentração e estrangeirização de terras, o privilégio aos exportadores e as péssimas condições dos trabalhadores rurais.
A notícia positiva, ressalta Gabetta, é que a maioria da sociedade Argentina espera que o conflito se resolva em termos democráticos, sem rupturas da ordem institucional. Ao contrário de outros momentos históricos, os militares não gozam hoje de legitimidade política significativa. Assim, para além do barulho das manifestações dos últimos meses, se elevam pouco a pouco vozes razoáveis que aprovam uma elevação de tributos no setor agrário exportador, exigindo, porém, uma diferenciação dos diversos setores do “campo”, em particular os pequenos produtores e os trabalhadores rurais. “Com maior correção ainda”, acrescenta, “o conflito reforça a necessidade de maior democracia e igualdade, maior transparência e participação cidadã, menor corrupção e autoritarismo”. Esses são alguns dos desafios que estão colocados para a democracia que tenta se construir no país.