Estamos chegando ao final de um ano que, provavelmente, será lembrado por futuros historiadores como um ponto de inflexão na história dos povos. As conseqüências da brutal crise que atingiu os mercados financeiros e a economia real ainda são incertas. O que é certo, repetem economistas, analistas políticos e historiadores, é que nada será como antes. A desintegração do modelo apregoado pelo chamado Consenso de Washington e suas teses em defesa do Estado mínimo e da desregulamentação dos mercados ocorre em uma velocidade típica dos processos de ruptura. No noticiário da mídia, ouvem-se palavras como “pânico”, “derretimento”, “papéis tóxicos”, “hipotecas podres”. As cifras exibidas oscilam dos bilhões aos trilhões. As pessoas que lutam diariamente para garantir o pão de cada dia assistem a tudo isso tentando dimensionar em que medida esse cenário catastrofista pode afetar suas vidas. O que o futuro nos reserva nos próximos meses?
Aqui vai uma sugestão de leitura para quem quer pensar um pouco mais sobre esse estado de coisas: Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre, da canadense Naomi Klein (editado no Brasil pela Nova Fronteira). O argumento central do livro é o seguinte: o método preferido para reformar o mundo de acordo com os interesses do grande capital é o de explorar sistematicamente o estado de medo e desorientação que acompanha a população em momentos de choque e crise. Agora que o mundo está sendo sacudido por múltiplos choques, escreve a autora, é um bom momento para ver como os capitalistas do desastre têm estado ocupados.
Como enriquecer destruindo vidas
Naomi Klein cita o caso do Iraque:
“Invadir países para apoderar-se de seus recursos naturais é ilegal, segundo a Convenção de Genebra. Isto significa que a gigantesca tarefa de reconstruir a infra-estrutura do Iraque —incluindo sua infra-estrutura petrolífera— é responsabilidade financeira dos invasores. São eles que deveriam ser forçados a pagar pelos consertos. (É preciso lembrar que o regime de Saddam Hussein pagou 9 bilhões de dólares ao Kuwait como reparações pela invasão do país em 1990.) Em vez disso, o Iraque está obrigado a vender 75% de seu patrimônio nacional para pagar as contas de sua própria invasão e ocupação ilegais”.
Outro exemplo ocorre com os transgênicos. O subsecretário de Estado dos EUA, John Negroponte, no mesmo discurso em que tentava vender o compromisso dos EUA para uma ajuda alimentar de emergência, pediu aos países que baixassem suas “restrições à exportação e suas altas tarifas” e que eliminassem “as barreiras para o uso das inovações tecnológicas na produção animal e vegetal, incluindo a biotecnologia”. A mensagem foi clara: os países pobres devem abrir seus mercados agrícolas aos produtos norteamericanos e às suas sementes transgênicas. Caso contrário, ficarão sem ajuda.
O politicamente impossível e o
politicamente inevitável
Quando Naomi Klein escreveu o livro, ainda não estava configurado o cenário da atual crise econômica. Mas os exemplos e argumentos que ela oferece são muito adequados para pensar o que acontece agora. “Somente uma crise – real ou pressentida – produz mudança verdadeira. Quando a crise acontece, as ações que são tomadas dependem das idéias que estão à disposição. Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável”. Essas palavras da autora adquirem contornos proféticos.
Até bem pouco tempo atrás, idéias como a da Taxa Tobin (que propõe um imposto sobre a circulação do capital financeiro global), do controle de capitais, da necessidade de regulação e controle do cassino financeiro por parte do Estado eram tratadas como anacronismos típicos de um ultrapassado pensamento estatizante. Quantas vezes ouvimos isso nos últimos anos? As críticas ferozes ao papel do Estado, a transformação da defesa do controle público dos mercados em uma heresia. Hoje, todos pedem o socorro do Estado. A começar pelos banqueiros e jogadores do cassino global que apostaram alto e perderam feio, arrastando nesta aventura milhões de pessoas em todo o mundo. Além da vida real das pessoas, outra vítima desta triste aventura é a memória. Os que faziam a apologia das privatizações e da desregulamentação hoje, ao mesmo tempo em que pedem a ajuda do Estado, exigem que este corte seus gastos para melhor poder ajudá-los. A amnésia anda de mãos dadas com o cinismo.
Nunca é demais, portanto, combater essa amnésia e esse cinismo. O livro de Naomi Klein, entre outras virtudes, nos ajuda a realizar essa tarefa. Ela lembra algumas das idéias que dominaram o cenário político e econômico internacional nos últimos anos (e que, certamente, soam familiares ao povo do Rio Grande do Sul ainda hoje, considerando o tipo de política que governa o estado):
“Em primeiro lugar, os governos deveriam abolir todas as regras e regulamentações que se interpunham no caminho da acumulação de lucros. Em segundo, deveriam vender todos os ativos que possuíam e que podiam ser administrados pelas corporações, com fins lucrativos. E, em terceiro, precisavam cortar drasticamente os fundos destinados aos programas sociais”.
“Os impostos, no caso de precisarem existir, deveriam ser baixos, taxando ricos e pobres na mesma importância fixa. As corporações deveriam ser livres para vender seus produtos em qualquer lugar do mundo, e os governos deveriam ser impedidos de proteger as propriedades e as indústrias locais. Todos os preços, inclusive o preço do trabalho, seriam definidos pelo mercado. O salário mínimo deveria ser abolido”.
O admirável mundo novo prometido pelos apóstolos destas idéias apresenta agora a sua fatura. Quem pagará a conta?