OPINIÃO

Palavras sem passaporte

Publicado em 23 de novembro de 2008

Quando as fronteiras geopolíticas eram vigiadas por bichos papões, o turismo servia ao mais arriscado dos contrabandos: o de vocabulário. Além da bagagem, passageiros tagarelas podiam ter até as mentes revistadas.

Em algumas épocas e lugares, houve mais paranóia no ar que oxigênio: sob o terror da suspeição lingüística, o viajante passava sufoco nas alfândegas totalitárias. O linguajar estrangeiro era visado porque, a priori, consideravam ameaça ao regime interno. Quem se sustenta pela supressão da liberdade de expressão teme até o silêncio expressivo.

Durante a Guerra Fria, por exemplo, as falas podiam congelar, da Sibéria à Flórida. Vai que um americano entrasse na União Soviética com palavras capitalistas na ponta da língua. Ou, tão assustador quanto, no tempo do macartismo, se um ianque retornasse aos EUA com termos comunistas na comunicação. Os vocábulos eram perseguidos ao dar bandeira.

Outros períodos de autocontrole oral coincidiram com o controle estatal, tipo o Nazismo e o Fascismo. O primeiro não tolerava o hebreu, idioma que teve de se misturar ao alemão para sobreviver como iídiche. Pela aguçada audição dos nazistas, o povo judeu aperfeiçoou a leitura labial. Já o segundo, via o inimigo nas palavras simbólicas, como Liberdade, União, Democracia, mesmo quando ditas por mímicos. Daí desditadas populações na Europa.

Infelizmente o filme que todo mundo já viu volta a passar, agora com legendas em chinês. Na colossal ditadura, as palavras se curvam ao poder central, o que faz do mandarim e incontáveis dialetos, rebanhos de ovelhas sonoras e escritas. E nunca estaremos seguros que a história não se repita na América Latina, e de novo não sejamos verborrágicos apenas da boca pra dentro.

O irônico é que, nessas ocasiões e territórios, nem havia tantos contrabandistas assim. Ninguém – a não ser espiões invisíveis, agentes insociáveis e diplomatas intocáveis – circulava mundo afora com slogans ideológicos, palavras de ordem, mensagens secretas. Nenhum, em sã consciência, afrontava os grandes irmãos. Cabia à insanidade, ou à ingenuidade, sobressaltar os muros.

Devido ao ditatorial consumo globalizado, o mundo virou um mapa só. Sem barreiras, exércitos de sotaques conquistam ex-países, e as nacionalidades são franqueadas aos verbetes que interessam à economia mundial.

Mas enquanto línguas são enroladas, um interprete universal se especializa no desentendimento. É o maior poliglota de todos os tempos – o dinheiro.

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