Se não estou inventando coisa, durante algum tempo na meninice fui vizinho de um poeta.
Vivia de poesia, que brotava do chão onde enfiasse as mãos. Para os passantes sem imaginação, parecia mais um jardinzinho diante dum alpendre; para os sensíveis, eram canteiros de estrofes. Uma vez por semana ele juntava um ramalhete e levava até o jornal. Em troca, uma vez por mês, lhe entregavam um cheque em botão.
Não estava escrito em lugar nenhum que não se incomoda um poeta; no avesso da minha testa, porém, esse lembrete era em néon. Me impedia de destravar o portão, de largar uma braçada de indagações tão frescas quanto a terra revolvida, muito menos de ousar me oferecer para capinar letras daninhas.
Enquanto perdurou a vizinhança, de uma embaçada janela indiscreta acumulei vislumbres. Alguns me encantaram, outros apenas avolumaram os mistérios.
O poeta plantava palavras ao seu modo. As estações não influíam, os dias de semear eram incertos e, se havia alguma inspiração no ato, a expressão dele não traduzia – ou era eu que não sabia ler um rosto naquela época.
Sem alarde, tirava uns envelopinhos do bolso, abria com cuidado para não jogar palavras ao vento. Se inclinava e deixava cair minúcias. Metia a mão noutro bolso, repetia os gestos noutra direção. Fértil, podia reaparecer, filigranar todo um trecho. Uma vez, um envelopinho vazio voou. À noite, coração na boca, o achei na calçada. Era feito de folha pautada, comum. Continha rabiscos a lápis, que não decifrei, caligrafia esquisita. Ou era eu que era iletrado mesmo.
Passados uns poentes nostálgicos ou arrebóis com cores do porvir, a obra desabrochava. Versos sem simetria, quadrinhas bem rimadas, poemas de sonoridade estranha. E solitários sonetos, odor alexandrino no ar. A própria grama se cobria de lirismo. Não dava pra dizer se o jardim vicejava ou versejava.
Então, mudanças. Primeiro o poeta, com suas miudezas debaixo do braço. Depois nós, a casa inteira sobre um caminhão. Por uma pausa do tempo, nos terrenos lado a lado uma poesia baldia aflorou. Até vir o inço com sua crítica.
Hoje, ao meu modo, cultivo palavras: tento enxertar sentidos improvisados em textos desprovidos de métrica. Teimosa busca de uma delicadeza híbrida. Como querer fazer ikebana com haicais ou adubar um poema com estrume de vaga-lume. Às vezes algo germina, como lótus no lodo. Resplandece e some em mim, antes da varanda poder exibir o vaso para o dia lá fora.
O meu vizinho sabia como ninguém regar um pé de poesia com o olhar. Ou era eu que já aguava versos em excesso.