Abecedrama
ue ler é um prazer ninguém discute. Mas alguém já parou pra pensar no que passam zilhões de letras até se alinharem diante do leitor? Nem queira saber. A vida dos empregados na empresa Alfabeto S. A. não é fácil.
Pra começar, são só 26 funções, cargos fixos. Funcionário nenhum pode trocar de atividade, o crachá é vitalício. Deve submissão total à pontuação, e ai de quem tentar formar palavra inexistente!
Você lê – este texto, por ex. – e não imagina as duras condições de trabalho das coitadas. O gosto delas não conta, não podem escolher assunto, influir no estilo. Obediência cega é a regra.
A tortura varia. As letras sofrem tanto com ignorantes como com estudiosos. Um autor escreve trechos e depois vê a tese, a carta, a matéria, e conclui: não era o que planejava. Aí deleta numa teclada. Do funeral de milhares de letras reunidas a serviço do escriba ninguém comentará nada. Às vezes alguém até se arrepende: puxa, fiz um verso, na hora não gostei, apaguei, e agora não lembro. Puizé. A essa hora já está no limbo, o pior lugar para um poema ir parar.
Outra insalubridade para as letras são os gêneros de trabalho. Imagine a rigidez da postura quando se arranjam, sistemática e rigorosamente, nos documentos jurídicos, como contratos, pareceres, provas. Elas padecem sob o jugo dos jargões. E quando atuam num tribunal, é pior: além de repetir data vênia sem parar, formam sentenças cruéis, condenações que podem acabar com vidas humanas.
A situação das letras nas bulas encabula. Elas, que podem até ter aspirações estéticas e poéticas, caem num dilema terrível: tentar, sem recursos, esclarecer o princípio ativo de um remédio, os efeitos colaterais. Apesar do esforço, não transmitem claramente a verdade aos doentes. Nas receitas, mais riscos: se mostram ilegíveis, além da vergonha de cada caligrafia!
Outras letras são castigadas manualmente. São mal desenhadas, misturadas com diferentes fontes, famílias incompatíveis, uma péssima impressão. É o que se vê em placas, tabuletas, cartazes. Vai ver, muitas delas adorariam estar num soneto shakespeariano.
Nem tudo é rotina, claro. Na música e na literatura (quer dizer, entre usuários talentosos), elas fazem a festa, se divertem, ganham importância, são até amadas por retinas exigentes.
Porém, não se engane. As letras se estressam sem parar. Pelas notícias, dá pra intuir seu pavor diário: elas nunca sabem em que manchete irão se meter amanhã. Isso não é vida.