Ilustração: Ricardo Machado
Ilustração: Ricardo Machado
Pode-se politizar terremotos? Pode-se tentar. O Wall Street Journal creditou a solidez dos novos prédios de Santiago que resistiram aos tremores à prosperidade trazida ao Chile pela economia de mercado, de acordo com a receita da Universidade de Chicago.
Milton Friedman, do seu túmulo, teria salvo centenas de chilenos da morte nos escombros. Assim como nunca reconheceu a contribuição da brutal repressão do Pinochet para o sucesso do modelo liberal no Chile – um sucesso relativo, pois a principal produção do país, o cobre, continuou sendo monopólio do Estado – o Wall Street Journal preferiu ignorar a outra realidade mostrada pelos terremotos, a de multidões de despossuídos saqueando e vandalizando lojas.
A desigualdade social persiste no Chile como persistiu em outros países da América Latina que adotaram o receituário de Chicago, e os chilenos viram-se desprotegidos como os haitianos. Quem quisesse politizar os terremotos em outro sentido poderia dizer que eles serviram não para validar um modelo, mas para derrubar uma mentira.
Mas, como fica difícil atribuir ideologias a placas tectônicas, talvez seja melhor pensar em terremotos apenas como metáforas. Quando não se pode confiar nem na firmeza do chão que se pisa, está-se perto da máxima metáfora possível para insegurança. O terremoto é a maneira que a Natureza tem de desdenhar das nossas certezas e nos lembrar da nossa insignificância. E da Terra nos dizer que ainda não está pronta, mas num processo de construção e autoajuste que mal entendemos e sobre o qual não temos nenhum controle.
Dizem que não corremos riscos de grandes terremotos no Brasil, apesar dos piores presságios do Lula para o caso de uma vitória do PSDB, mas é fácil imaginar o pavor dos outros. Se um dia você se encontrar em meio a um terremoto, console-se com este pensamento: é a Terra falando com você na única linguagem que conhece. É uma metáfora, mas procure um lugar seguro.
O terremoto que destruiu Lisboa no século 18 não foi exatamente politizado. O debate, então, era sobre a natureza do Deus que permitira aquele horror, e engajou crentes contra descrentes como Voltaire. Um dos efeitos colaterais da tragédia foi um alento para as ideias iluministas, dada a desilusão com o Deus destruidor. Hoje se compreende as razões, geológicas e não teológicas, para os cataclismos, o que não impede que Deus e seus meios sejam questionados pelo que mais sofrem seus efeitos e custam a se recuperar. E tanto chilenos quanto haitianos têm as mesmas queixas.
Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.