Ilustração: Ricardo Machado
Ilustração: Ricardo Machado
Kafka escrevia em alemão. A língua do seu cotidiano era o tcheco. A língua da sua mãe era o iídiche. Além de tudo, o mais que representa para a literatura moderna, Kafka foi o primeiro a falar do estranhamento com a língua materna, que no fim é um estranhamento com toda linguagem, que acomete quem a abandona. Escritores escrevendo na língua que não era a da sua casa foi uma constante do século. Foi Kafka quem, no século dos exílios, definiu uma das suas formas: o exílio em outra língua. Na qual ninguém se sentia em casa com sua “mutter” e talvez por isso tenham criado o que criaram.
Falar e escrever em latim era comum na Idade Média e na Renascença e, até há pouco tempo, em quem recebia uma educação clássica. Mas o latim era a língua universal do privilégio e da alta cultura, um pouco como foi o francês mais tarde. Um adendo, não uma alternativa. O primeiro notável a abandonar sua língua materna e adotar, e dominar totalmente, outra foi Joseph Conrad, o polonês que acabou como um dos grandes estilistas do idioma inglês. Muito depois, o exemplo mais notório dessa migração foi o russo Vladimir Nabokov.
Nabokov também é o melhor exemplo do estranhamento citado por Kafka e das suas consequências literárias. Talvez nenhum outro escritor do século tenha usado a linguagem com a sua destreza e inventividade, frutos do estranhamento. Só quem chega adulto numa língua estranha vindo de outra pode descobrir todas as suas possibilidades e brincar com todas as suas peculiaridades, como Nabokov fez com o inglês até beirar o preciosismo. No seu caso, a língua abandonada, a língua da casa, era a de uma infância idílica na São Petersburgo pré-revolução, cujas lembranças só alimentavam a mordacidade da sua linguagem no exílio.
Samuel Beckett era um irlandês que escrevia em francês. Como no caso de Nabokov, isso também lhe possibilitou escrever numa linguagem pura, no sentido de intocada pelas tradições e pelos vícios acumulados da língua da infância. Ele usou a linguagem como um jogo, como o máximo de liberdade e experimentação permitida longe da mãe. É verdade que levou a depuração da linguagem a tal ponto que seu objetivo lógico parecia ser o silêncio, ou um exílio intelectual além do exílio em outra língua, ou a pureza no seu estado máximo. Para Beckett, o estranhamento só trouxe a angústia da impossibilidade de nos comunicarmos, em qualquer língua.
Jorge Luis Borges transitou por todas as línguas, por todas as literaturas e por toda a História, sem contar as partes que ele mesmo inventou. Dizem que seu primeiro texto, sobre os mitos gregos, foi escrito quando ele tinha sete anos de idade, em inglês. Depois, ninguém como ele brincou tanto com a linguagem, com a tênue linha que separa a erudição da paródia de erudição, a criação literária de outras formas de prestidigitação – enfim, com a linguagem como travessura. Mas escrevia na língua da sua infância. E, depois da cegueira, quem lia para ele era sua mãe. Borges tinha a língua e a voz maternas com ele, portanto. O seu não era um exemplo de estranhamento kafkiano. Ou era um estranhamento que Kafka invejaria.