Era um quadro-negro que não era negro, era verde. Verde-escuro, manchado, empoeirado, mofado. Por tudo isso, um quadro triste. Bastava olhar pra ver que tinha tido dias melhores.
Mas ninguém podia olhar pro quadro: estava atrás da pilha de portas de casas demolidas, escoradas numa parede de um depósito de materiais de construção. Vez ou outra, nas buscas de um cliente, o arranjo das portas se rearranjava. Aí, algum raio de luz atravessava as frestas e pousava na lousa. Nesses breves instantes, o quadro-verde ganhava um tom esperançoso.
Um dia arremataram dezenas de portas e o quadro quase cegou de luz: estava à vista, o mofo atacado de claridade.
Na mesma ocasião, uma bola da meninada vizinha saltou o muro e caiu perto do quadro. E não deu outra: as crianças que vieram pedir a bola viram o quadro e bastou um pedido para o quadro sair dali com elas.
Num quintal da vizinhança, o quadro foi lavado e secou ao sol primaveril. E faminto como estava de carbonato de cálcio, adorou quando vários tocos de giz colorido se enfileiraram junto dele. Logo letras e números, palavras e frases o reanimaram. Seu verde-escuro se avivou e o contraste facilitou a leitura da meninada.
A partir daí, uma sala de aula de faz-de-conta enchia os ares de vozes alegres, que repetiam as lições da escola lá na periferia. Mas o faz-de-conta foi além da conta.
Ao fim das brincadeiras (crianças maiores “ensinando” crianças menores ou todos juntos fazendo o quadro de muro de grafites) o quadro era limpo, pronto pra outro dia de agitos de giz. Na manhã seguinte, a surpresa: lá estava o quadro com exercícios novos, numa letra linda e floreada, de ninguém dali. Ou pelo menos ninguém que admitisse autoria.
Virou um mistério. Experimentaram armadilhas: deixar o quadro tapado com um pano grande; encher o quadro todo com rabiscos; cobrir com desenhos. Nada disso fez efeito: o quadro reapresentava sua magia, com exercícios à moda antiga.
Só não lembravam de esconder o quadro bem-escondido, largado num puxado num dos tantos quintais da zona, ao lado de uma passagem. Mas por mais que deitassem tarde ou acordassem cedo pra vigiar, lá estava outra lição do dia.
Até que alguém comparou a letra no quadro com a de um caderno de compras da sua avó: era igual! Aliás, era igual a de todos os cadernos da venda. O que foi confirmado quando foram até lá comprar giz com um dos cadernos e a dona da venda anotou com capricho a despesa. A mesma caligrafia de ex-professora.
Mas ninguém abriu a boca. Era melhor conviver com aquele jogo.
Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica