Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica
Já pensaram, litros do leite da bondade humana postos de porta em porta, em manhãs com cerração? Imaginem: por causa do frio, um tropeção e o litro quebra. Alguém chora pelo leite derramado. E o vizinho vem e reparte seu leite da bondade.
Um gole diário e as necessidades básicas são atendidas. A produção do leite da bondade humana cresce, se industrializa, se diversifica: leite da bondade humana integral, semidesnatado, desnatado, condensado. Iogurte, coalhada, manteiga, queijos. Leite da bondade humana em pó!
O laticínio passa de ltda. para S. A. O controle de qualidade fica mais rigoroso, passa a selecionar melhor o fornecimento, exige cotas mais elevadas dos produtores, dispensa matrizes, estabelece competitividade entre as mamas, inclusive entre a esquerda e a direita.
Embora com nova tecnologia, embalagens de design pós-moderno, marketing agressivo, algo acontece. O leite da bondade humana começa a fermentar já nos depósitos. Os efeitos se sucedem em cascata: a irritação toma os departamentos do laticínio do leite da bondade humana, as mamas exploradas reivindicam percentuais mais justos de produção, os engenheiros do leite da bondade humana abandonam o controle da qualidade, os equipamentos perdem em manutenção, os estoques baixam, o gosto se altera no produto final, a desconfiança afasta definitivamente os consumidores do leite da bondade humana.
Resultado: a pouca produção encarece o leite da bondade humana. Quem consegue adquirir não reparte nem com parentes. Uma colher de leite da bondade humana pelo amor de Deus, suplicam mendigos à porta de padarias e supermercados.
Depois de séculos de produção ininterrupta, o leite da bondade humana para de jorrar no peito das pessoas. A glândula altruísta atrofiou na espécie. O leite da bondade passa a ser fornecido somente a pacientes terminais e vítimas de catástrofes. Em gotas.
Como diriam os desmamados: sociedade de consumo é isso aí.