Ilustração: Pedro Alice
A onda de manifestações populares que surpreende o Brasil e atemoriza os governantes deve estimular debates que permitam avançar na compreensão dos fenômenos em curso. Penso que as multidões nas ruas expõem a crise terminal de um modelo político que vem arrastando suas correntes como um fantasma há muito. O mais provável é que o Poder reaja como sempre: finja que irá mudar para que tudo continue como sempre. Independente disto, o Brasil já não é o mesmo. A experiência das mobilizações mostrou que o impossível em política é, na maioria das vezes, apenas aquilo que nunca foi tentado.
Os jovens indignados se descolaram das instituições e não se sentem representados pelos discursos hegemônicos. Eles olham para os partidos, para os governos, para o Judiciário, para a mídia, com a sensação de que todas estas instituições se movem em um mundo fantasioso e medíocre onde a manipulação é a regra, o descompromisso com o povo o conteúdo mais relevante e a hipocrisia um estilo inconteste. Estariam equivocados ao manifestar este estranhamento? Nossa realidade não deveria ser pensada exatamente a partir do mal-estar com as instituições que teimam em ignorar os desafios das grandes reformas e que seguem reproduzindo roteiros para os privilégios, o oportunismo, a violência e o preconceito?
No começo, os “formadores de opinião” ligaram o automático e sentenciaram: o movimento era coisa de baderneiros. Ninguém como Arnaldo Jabor verbalizou tão bem este desprezo. Em comentário no Jornal Nacional, ele afirmou que a causa dos manifestantes era “a ausência de causas” e que “esses revoltosos de classe média não valem nem 20 centavos”. A direita vibrou. Ocorre que o quadro se alterou. Primeiro, veio a absurda repressão da PM em São Paulo que disparou contra a multidão com balas de borracha, munição antimotim que pode cegar e matar. Só a Folha de São Paulo teve sete jornalistas feridos, um deles com gravidade. A violência policial terminou acionando o gatilho para a nacionalização do movimento e o mundo se moveu novamente. Jabor pediu desculpas e a mídia entendeu que devia segurar seus pit bulls. Aí foi a vez da esquerda tradicional descarrilhar. Multidões insatisfeitas na rua, afinal, trazem imponderabilidade para a cena política. A burocracia petista, por exemplo, sabe muito bem como enfrentar uma oposição raquítica e oportunista e está mais do que preparada para as manobras no Congresso, para o jogo do toma-lá-dá-cá, para a cooptação das entidades de representação popular e tudo o mais. Na dúvida, um novo ministério acomodará o mais recente aliado. Os gênios palacianos, entretanto, não têm a menor ideia de como se posicionar diante de manifestações autônomas do povo, porque o PT saiu das ruas há muito e, nelas, só é reconhecido como parte da estranheza que importa mudar. Daí as declarações sobre o “fascismo” nos movimentos e sobre os riscos de “golpe da direita”, como se a direita já não estivesse muito bem alojada no Poder. É evidente que as manifestações atuais não possuem plataforma política definida, nem direção. Elas expressam contrariedade, insatisfação e paciência esgotada. O ufanismo do governo e da mídia com os “grandes eventos”, os investimentos bilionários para a Copa e a ausência de respostas elementares nas políticas públicas essenciais, somadas à leniência generalizada das autoridades com a corrupção e a pilantragem, formam o caldo dos protestos. Com efeito, motivos não faltam para lutar. O que nos falta são instituições para isso, a começar por partidos éticos e programas verdadeiros. Também por isso, as ruas são, hoje, o único espaço capaz de acolher os sonhos dos jovens brasileiros.
Cenários do tipo se prestam, claro, para todo tipo de confusão, para a presença de pessoas com ideais antidemocráticos e, mesmo, para a ação de provocadores e delinquentes. Riscos que são maiores quando não há um esforço para a organização dos movimentos. Nada disso, entretanto, autoriza concluir que as mobilizações em curso coloquem em risco a democracia ou que as multidões estejam sendo manipuladas por grupos reacionários. O contrário é, possivelmente, muito mais verdadeiro: sem estas mobilizações, nossa democracia continuará sendo uma oligarquia mesquinha e seus partidos pouco mais do que máquinas organizadas para o butim.
Nunca a crise de representação – em todos os níveis – foi tão clara no Brasil. É preciso enfrentá-la com coragem e lucidez, produtos rarefeitos na política brasileira. Outro ciclo de nossa história terminou e o momento é o de discutir o que queremos para o futuro. O formato democrático para reinventar a democracia exige abrir espaços para o ativismo autoral, rompendo o monopólio dos partidos. O processo que pode viabilizar este salto é a convocação de uma Constituinte exclusiva para a reforma política, com candidaturas avulsas e listas independentes registradas mediante critérios mínimos de representatividade. O caminho para sair da crise, em síntese, é mais democracia, não menos.