Lembrando Hannah Arendt: sobre a reflexão e a banalidade do mal
Arte: Divulgação
Ao final da Segunda Guerra, muitos foram os criminosos nazistas que conseguiram fugir da Alemanha. Sabe-se, já há muito, que o Vaticano – após o vergonhoso silêncio de Pio XII diante do Holocausto – cumpriu o lamentável papel de auxiliar líderes nazistas. Inúmeras são as evidências a respeito apresentadas por estudos como o de Gitta Sereny, No meio das Trevas (Otto Pierre Editores, 1981). Boa parte dos fugitivos escolheu a América do Sul como refúgio, sendo Chile, Argentina, Paraguai e Brasil seus destinos preferidos. Ao início dos anos 1960, o Serviço Secreto de Israel (Mossad) localizou em Buenos Aires um destes sujeitos. Seu nome era Adolf Eichmann. Ele havia sido tenentecoronel das SS e o principal organizador do sistema de transporte de milhões de judeus da Europa ocupada para os campos de extermínio. Foi, assim, peça central na chamada Endlösung (Solução Final), praticada pelo Terceiro Reich. Eichmann foi julgado em Jerusalém em 1961, e condenado à morte como um dos responsáveis pelo genocídio. O julgamento contou com a cobertura de jornalistas de todo o mundo. No meio deles, havia uma senhora enviada pela revista americana The New Yorker. Ela não era uma profissional de imprensa e acompanharia os debates da Corte a partir de seu olhar como filósofa. Hannah Arendt era seu nome. Não por acaso, o que ela viu naquele julgamento ninguém mais poderia ter observado.
A tendência natural na imprensa da época foi a de descrever Eichmann como um “monstro”. Alguém especialmente cruel, insensível ao sofrimento de milhões de pessoas. Sua defesa foi a da “obediência devida”. Ele afirmava que havia apenas seguido ordens e que este era seu dever como militar, ainda mais em tempos de guerra. Hannah Arendt, então, nota que Eichmann era um sujeito como muitos outros. Não se tratava de um perverso ou de um sádico. O que ele fez havia sido monstruoso, mas ele era “terrivelmente normal”; um burocrata medíocre e arrivista, preocupado com suas rotinas e obrigações funcionais. Alguém cuja característica distintiva era a incapacidade de pensar. Retomando uma distinção kantiana, Arendt sustenta que a reflexão diz respeito à razão, não à inteligência. A inteligência é meramente operativa e nos permite resolver problemas. Já a razão é o espaço onde perguntamos, em diálogo silencioso conosco mesmos, sobre os sentidos que atribuímos ao mundo. Pois bem, Eichmann era incapaz disto. Suas opiniões eram lugares comuns que revelavam o deserto de pensamento em que habitava. É quando a filósofa expõe sua hipótese perturbadora nos termos da seguinte pergunta:
Seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção independente de resultados e conteúdo específico – estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os ‘condicione’ contra ele?
A pergunta é decisiva. Se Hannah Arendt estiver correta, então a ausência de pensamento é condição produtora do mal. Dito de outra forma, pessoas desacostumadas à reflexão ou que tenham dificuldade de exercitar a razão de maneira autônoma estariam aptas às piores práticas, o que sintetiza o conceito de “banalidade do mal” proposto pela filósofa. Em consideração a esta hipótese, penso que há perguntas pertinentes a serem feitas por todos nós professores, entre elas, as seguintes: 1) Em que medida estimulamos ou deprimimos a reflexão? 2) Valorizamos processos criativos de pensamento e de fundamentação ou exigimos apenas a reprodução dos conteúdos? 4) Se processos de avaliação devem estimular o pensamento, por que não permitir a livre consulta, abandonando o tipo de teste que só pode medir a memorização? 5) Em última instância, estamos formando burocratas vocacionados a cumprir ordens ou cidadãos capazes da crítica e da coragem moral?