Ilustração: Pedro Alice
Ilustração: Pedro Alice
Os cinemas estão exibindo Noé, uma superprodução de Hollywood que trata do episódio bíblico do dilúvio. A história, como se sabe, dá conta do “genocídio universal”, que teria sido ordenado por Deus. O desfecho do mito é a legitimação da vingança: “Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu”, diz Deus a Noé. O Antigo Testamento, como se sabe, reúne alguns dos textos mais violentos de que se tem notícia. Segundo o historiador Raymund Schwager, a Bíblia hebraica possui mais de 6 mil relatos onde reis, exércitos e indivíduos produzem massacres e pelo menos mil versículos onde Jeová aparece, diretamente, como o executor das matanças, além de cem passagens onde Deus ordena que pessoas sejam mortas.
Os cristãos costumam lembrar que o Novo Testamento é substancialmente diferente. No que diz respeito à violência, eles estão possivelmente certos. Afinal, as “boas novas” anunciadas por Jesus (com valores centrais de compreensão e perdão) assinalam ousada ruptura “humanista”. O problema é que muitas passagens – que refletem os valores e os parcos conhecimentos de sociedades tribais e pastoris – são suficientemente ambíguas para que se retire delas o que se deseja. Assim, por exemplo, a frase de Jesus “Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam” ( Jo. 15.6) foi usada para justificar o assassinato de milhares de mulheres em fogueiras por toda a Idade Média. Da mesma forma, algumas passagens homofóbicas das Escrituras têm estimulado, atualmente, o preconceito e a violência contra os homossexuais.
A ideia de uma “palavra sagrada” diante da qual todo e qualquer comportamento dissonante seja, necessariamente, expressão do “pecado” é uma ameaça à civilização. Felizmente, a maioria dos cristãos contemporâneos não tem diante da Bíblia uma postura fundamentalista (a maioria, eu disse). Não fosse assim, a civilização tal como a conhecemos seria impossível. Afinal, quem se orientasse “ao pé da letra” pela Bíblia encontraria razões para “vender as filhas como escravas (Êxodo 21:7) ou “possuir escravos adquiridos de nações vizinhas” (Lev. 25: 44). Há regras que determinam que as mulheres não sejam tocadas durante o período menstrual (Lev. 15: 19-24) e outras que mandam matar quem trabalhar aos sábados (Êxodo 35:2).
Segundo Levíticos (19:27), os homens não devem “cortar o cabelo em redondo, nem danificar as extremidades da barba”. Somos também proibidos de “ferir nossa carne ou de fazer marcas sobre elas” (piercingsou tatuagens, então, nem pensar) e não deveríamos “comer nada com sangue”, um alerta importante para quem aprecia carne malpassada. Agricultores que plantem mais de uma cultura violam a “palavra de Deus” (Lev. 19:19) e as mulheres que usam roupas feitas de dois tipos de tecido, também. Aqueles que xingam e blasfemam são “imundos” e deveriam ser apedrejados até à morte (Lev. 24:10-16). Já o homem que se deitar com uma mulher que esteja enferma, “descobrindo sua nudez”, será morto e a mulher doente também (Lev. 20:18).
Alguém que partisse do pressuposto de que essas passagens correspondem à “vontade de Deus” se transformaria em um assassino. Para agir dessa maneira fanática, entretanto, será preciso sempre uma decisão anterior: a decisão de abdicar do pensamento, do raciocínio autônomo. Cabe ao processo formal de educação estimular o senso crítico necessário para que nenhuma pessoa – seja religiosa, ateu ou agnóstica – seja capturada pela recusa ao pensamento. Senão por outro motivo, porque a humanidade já sofreu demais por conta dessa covardia.
*Jornalista, sociólogo e professor do IPA.