Ilustração: Ricardo Machado
Ilustração: Ricardo Machado
Pode-se discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo foi uma opção correta ou não, mas não há equivalência possível entre os mortos de um lado e de outro. Não apenas porque houve mais mortes de um só lado, mas por uma diferença essencial entre o que se pode chamar, com alguma literatice, de os arcos de cumplicidade.
O arco de cumplicidade dos atentados contra o regime era limitado à iniciativa, errada ou não, de grupos ou indivíduos clandestinos. Já o arco de cumplicidade na morte de contestadores do regime era enorme, era o Estado brasileiro.
Quando falamos nos “porões da ditadura” onde pessoas eram seviciadas e mortas, nem sempre nos lembramos que as salas de tortura eram em prédios públicos, ou pagas pelo poder público – quer dizer, por todos nós.
A cumplicidade com o que acontecia nos “porões” em muitos casos foi consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser investigada a participação de empresários e outros civis na chamada Operação Bandeirantes durante o pior período da repressão, por exemplo. Mas a cumplicidade da maioria com um Estado assassino só existiu porque o cidadão comum pouco sabia do que estava acontecendo.
A contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha retroativa pela memória do país e igualar os dois arcos de cumplicidade. Não distingue os mortos nem como morreram. Todas as mortes foram lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do Estado ou num confronto com as forças do Estado na selva em que ninguém sobreviveu ou teve direito a uma sepultura significam mais, para qualquer consciência civilizada, do que os outros. O que se quer saber, hoje, é exatamente do que fomos cúmplices involuntários.